segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Ah, pai!

Para LP

Tantas fotos lindas em que estamos sempre abraçados, sorrindo ou gargalhando e eu escolho essa antiga, embaçada, quase desbotada. Por que, pai? Porque nela alguém flagrou um dos melhores e mais especialmente comuns de nossos momentos: você me ensinando algo daquele seu jeito nada convencional.

Você nos assaltava assim que pisávamos em casa ou quando acordávamos no domingo: “Qual a capital do Acre?”, “Quais as cores da bandeira da Turquia?”, “Sabia que existe um país muito menor que a extensão do estado de São Paulo?” O atlas muito bem cuidado nas mãos, ofertando a nós um mundo que só assim você conhecia.
Quando não era a geografia da escola, era a das revistas, especialmente a extinta Caminhos da Terra, com a qual, entre empolgado e abismado, você descobria uma temperatura ou solo que só existia no lugar X; um povo datado de antes de antigamente ainda existente no lugar Y; uma tartaruga pré-histórica vivente no lugar Z. E mostrava a foto. E lia o texto. E ficava parado, pensando? E dizia que um dia sua nave viria resgatá-lo, porque você não é desse mundo! Ah, pai!
Talvez eu tenha herdado de você o gosto pela fotografia – o gosto, não a técnica! -, de uma época em que se tinha de pensar muito para tirar uma foto, pois filme caro e revelação idem. Filme de 36 poses era luxo só. Lembra quando me ajudou em um trabalho do magistério ou da faculdade? Saímos por Sampa clicando vários lugares e pessoas, mas, quando retiramos o filme da máquina ele não havia rodado... E em uma outra vez, quando o moço da Fotóptica veio desolado com o rolo todo preto, sem nada nada? Depois de perplexo-triste-bravo, você soltava alguma pérola engraçadinha para não repetirmos o erro na próxima vez. Ah, pai!
Essas alegres descobertas, as bobagens faladas como sérias e o humor tonto das histórias em quadrinhos lidas e contadas aos risos são minhas melhores lembranças, mais que a casmurrice, as proibições (in)fundadas na tradição, as doenças que lhe acometeram tão cedo (ou seriam as passagens de sua nave por essa Terra?), os longos períodos de silêncio na postura d’O Pensador (e a Tina dizendo “deixem seu pai em paz conversando com os botões dele”. Se eu pudesse, entrava lá no seu quarto correndo e jogava aqueles chatos botões pela janela! Só bem mais tarde, na terapia, renomeei aqueles botões...).
Dos seus completos 6.4, em quase 4.3 aprendi a entender seus silêncios, mas também o vi mudar muito, falar mais (até mesmo ao telefone!), posicionar-se (ainda que com esforço), comemorar (comedidamente), desejar (quase por descuido), sentir-se merecedor de (mas ainda assim chorar ao agradecer). Ah, pai! Aceite. E vá além, por favor! E que sua nave tenha definitivamente esquecido você aqui. “Pelo tempo que durar”.
     
 Níver do pai, 29-08-2016