quinta-feira, 30 de março de 2017

Memória

- Você morou em Jaçanã, não é?
- Não. Vila Zilda. É perto.
- Serve. Sabe aquela música daquele cara que fala engraçado?
- Não.
- Ele fala meio enrolado, quase não dá para entender...
- Não.
- Acho que ele mora com a mãe.
- ???
- Vem cá, como você fazia para chegar até lá?
- Ia de ônibus.
- Não, não é ônibus.
- Eu ia de ônibus, já disse!
- É bonde, não é?
- Quê?
- O cara da música. Vai de bonde.
- Não sei do que você está falando. 
- Puxa, cara, queria tanto me lembrar de alguma coisa.
- ...
- Ah, eu sei que ele não pode ficar mais com a namorada.
- E por quê?
- Sei lá. Acho que a mãe dele não deixa.
- Cara, isso parece conversa de doido.
- Tem uma coisa tipo Cinderela, sabe? Aquela coisa de meia-noite vira abóbora?
- Sério, vou nessa.
- Peraí! Lembrei: é de trem...
- Trem das onze?!
- Acho que é isso! Qual o nome do cara?
- Adoniran Barbosa.
- Isso! Cara, salvou a minha vida!
- Falô!
- Ei, tem o celular dele?
- “Não posso ficar, nem mais um minuto com você”...

quinta-feira, 23 de março de 2017

Ouvido na Rampa

Em tempos não muito distantes, na era do Orkut, havia uma comunidade chamada “Odeio a rampinha da Bresser”. Isso só me chamou a atenção porque eu estava, naquele ano de 2005, de mudança para a Mooca, exatamente para a
Foto de Lourdes Siracuza Cappi
rua do metrô Bresser, hoje Bresser-Mooca. Tempos mais tarde, fui descobrindo que há controvérsias quanto ao nome do bairro, ou melhor, de em que bairro está a minha rua: para alguns, ainda é ou “é só” o Brás, com seu intenso comércio, em muito irregular; para outros, tão Mooca como a rua Juventus ou “qual a diferença com a Rua Cassandoca?”. Sem ser leviana, acho que posso dizer que há uma espécie de luta de classes velada dentro do próprio bairro.
Fato é que, cidadão mooquense ou não, se sua via de chegada à região for o transporte metropolitano, você há de descer a rampinha da Bresser (e depois subir!). Saindo à direita da catraca, destino à Radial, literariamente chamada de Alcântara Machado (imaginou ele o efeito que surtiria Brás, Bexiga e Barra Funda?), são três lances de rampa, com a opção de o terceiro ser uma escadaria. Se seu destino não for visitar um parente ou trabalhar no comércio ou nas poucas fábricas ainda existentes, você deve fazer parte de um dos quatro povos frequentadores diários do bairro.
O povo de branco chega/sai sempre na hora da troca de turno principalmente do Hospital Salvalus, em reforma e ampliação há quase uma década, tempo em que a camada fina de poeira de construção toma conta do meu lar e, pior que isso, o meu nascer do sol foi roubado pelo porcelanato e pela vidraçaria do arranha-céu duplo que substituiu o simpático sobradinho da Maternidade do Brás. Progresso, senhores, claro. A esse povo, juntam-se também visitantes e pacientes de outros hospitais especializados em câncer de mama ou em olhos-ouvidos-boca-e-nariz. Nada de brincadeira de criança.
O povo de Deus tem vários caminhos a escolher, se bem que eu preferiria um culto ecumênico. As católicas Renovada e Nossa Senhora dos Ferroviários, com a linha do trem estrategicamente ao fundo. A Congregação Cristã com suas lojinhas de instrumentos musicais e véus ao redor, fora o forte esquema – particular - de segurança e controle de tráfego em dias de grandes eventos. Uma Academia Maçônica, sociedade tida como secreta, mas autoadjetivada como discreta. O Centro Espírita Ubiratan, com filas na porta, aos fins de semana, de não-abençoados pelo mesmo dinheiro de alguns que, na esquina, podem comprar um quilo de carne. E que geralmente atravessam a rua para... ”nem chegar perto!”
O povo da “facul” vem apressado. O da esquerda atrasado para pegar o “Paidebarru, paidebarru terminal”, apregoado pelo cobrador do lotação, já saindo do ponto de ônibus. Alguns preferem economizar e optam pela caminhadinha que, antes de cruzar a Radial e margear o Parque da Mooca, deve atravessar a “população em situação de rua” do Centro de Convivência do Viaduto Bresser, que “insiste em tornar o nosso bairro mais pobre e feio” (agora é “nosso bairro”, vizinha?) e que “não sei para onde devem ir, mas aqui não é o lugar!!” (ordena a voz que sai do nariz tapado indiscretamente). Os da direita não têm opção: só chegam a seu campus caminhando. Ambos, porém, em algum momento, ou em quase todos, param nos bares, de onde aos risos escutam o sinal das aulas, sem que a cerveja, a vodka ou o uísque, de segunda a sexta, tenha terminado. Mas invariavelmente, a partir das 22:30, animados, todos sobem a rampinha de volta aos lares.
O povo do telemarketing é o mais recente e também o mais mutável: nada garante que quem você conheceu hoje, comprando salgadinho e cigarros no boteco da esquina, esteja aqui amanhã. Dizem ser altamente rotativo esse setor. Que seja porque tenham encontrado ocupação melhor, espero!
Aos invariáveis sorrisos das crianças da Apae em suas cadeiras de roda, contrastantes geralmente com o semblante preocupado de suas mães, somam-se os camelôs com seus guarda-chuvas saídos não sei de onde, nos primeiros minutos dos pingos, ou ainda aqueles especializados em capinha e carregador portátil de celular, ou a mais nova febre, o atrevido pau-de-selfie; as banquinhas de frutas, açaí, tapioca ou os carrinhos de pipoca, milho verde cozido e de espetinhos cuja fumaça se mistura aos perfumes todos. Os sotaques são paulistas, nordestinos e agora haitianos, “mais uma raça que veio tirar nosso emprego” (eu não sabia que você trabalhava de camelô, querida...).
Oxalá que o ódio à rampinha fosse apenas devido ao esforço empreendido para subir a rampa ou à inevitável e às vezes longa espera para as águas baixarem quando da tempestade que torna a rua um rio. Que prevaleça o cotidiano e belo pôr-do-sol que poucos observam ou a cena única da mulher com a trouxa na cabeça, tal “lata d’água na cabeça, lá vai Maria”. Eu subo o morro, mas me canso do que ouço, Maria. Me canso.


Publicado originalmente em Eu nunca tinha passado por aqui, org. por Marília Oliveira, 2015.