Em tempos não muito
distantes, na era do Orkut, havia uma comunidade chamada “Odeio a rampinha da
Bresser”. Isso só me chamou a atenção porque eu estava, naquele ano de 2005, de
mudança para a Mooca, exatamente para a
Foto de Lourdes Siracuza Cappi |
Fato é que, cidadão
mooquense ou não, se sua via de chegada à região for o transporte
metropolitano, você há de descer a rampinha da Bresser (e depois subir!).
Saindo à direita da catraca, destino à Radial, literariamente chamada de
Alcântara Machado (imaginou ele o efeito que surtiria Brás, Bexiga e Barra Funda?), são três lances de rampa, com a opção
de o terceiro ser uma escadaria. Se seu destino não for visitar um parente ou
trabalhar no comércio ou nas poucas fábricas ainda existentes, você deve fazer
parte de um dos quatro povos frequentadores diários do bairro.
O povo de branco chega/sai
sempre na hora da troca de turno principalmente do Hospital Salvalus, em reforma
e ampliação há quase uma década, tempo em que a camada fina de poeira de
construção toma conta do meu lar e, pior que isso, o meu nascer do sol foi
roubado pelo porcelanato e pela vidraçaria do arranha-céu duplo que substituiu
o simpático sobradinho da Maternidade do Brás. Progresso, senhores, claro. A
esse povo, juntam-se também visitantes e pacientes de outros hospitais
especializados em câncer de mama ou em olhos-ouvidos-boca-e-nariz. Nada de
brincadeira de criança.
O povo de Deus tem vários
caminhos a escolher, se bem que eu preferiria um culto ecumênico. As católicas
Renovada e Nossa Senhora dos Ferroviários, com a linha do trem estrategicamente
ao fundo. A Congregação Cristã com suas lojinhas de instrumentos musicais e
véus ao redor, fora o forte esquema – particular - de segurança e controle de
tráfego em dias de grandes eventos. Uma Academia Maçônica, sociedade tida como
secreta, mas autoadjetivada como discreta. O Centro Espírita Ubiratan, com
filas na porta, aos fins de semana, de não-abençoados pelo mesmo dinheiro de
alguns que, na esquina, podem comprar um quilo de carne. E que geralmente
atravessam a rua para... ”nem chegar perto!”
O povo da “facul” vem
apressado. O da esquerda atrasado para pegar o “Paidebarru, paidebarru
terminal”, apregoado pelo cobrador do lotação, já saindo do ponto de ônibus.
Alguns preferem economizar e optam pela caminhadinha que, antes de cruzar a
Radial e margear o Parque da Mooca, deve atravessar a “população em situação de
rua” do Centro de Convivência do Viaduto Bresser, que “insiste em tornar o
nosso bairro mais pobre e feio” (agora é “nosso bairro”, vizinha?) e que “não
sei para onde devem ir, mas aqui não é o lugar!!” (ordena a voz que sai do
nariz tapado indiscretamente). Os da direita não têm opção: só chegam a seu
campus caminhando. Ambos, porém, em algum momento, ou em quase todos, param nos
bares, de onde aos risos escutam o sinal das aulas, sem que a cerveja, a vodka
ou o uísque, de segunda a sexta, tenha terminado. Mas invariavelmente, a partir
das 22:30, animados, todos sobem a rampinha de volta aos lares.
O povo do telemarketing é o
mais recente e também o mais mutável: nada garante que quem você conheceu hoje,
comprando salgadinho e cigarros no boteco da esquina, esteja aqui amanhã. Dizem
ser altamente rotativo esse setor. Que seja porque tenham encontrado ocupação
melhor, espero!
Aos invariáveis sorrisos das
crianças da Apae em suas cadeiras de roda, contrastantes geralmente com o
semblante preocupado de suas mães, somam-se os camelôs com seus guarda-chuvas
saídos não sei de onde, nos primeiros minutos dos pingos, ou ainda aqueles
especializados em capinha e carregador portátil de celular, ou a mais nova
febre, o atrevido pau-de-selfie; as
banquinhas de frutas, açaí, tapioca ou os carrinhos de pipoca, milho verde
cozido e de espetinhos cuja fumaça se mistura aos perfumes todos. Os sotaques
são paulistas, nordestinos e agora haitianos, “mais uma raça que veio tirar
nosso emprego” (eu não sabia que você trabalhava de camelô, querida...).
Oxalá que o ódio à rampinha
fosse apenas devido ao esforço empreendido para subir a rampa ou à inevitável e
às vezes longa espera para as águas baixarem quando da tempestade que torna a
rua um rio. Que prevaleça o cotidiano e belo pôr-do-sol que poucos observam ou
a cena única da mulher com a trouxa na cabeça, tal “lata d’água na cabeça, lá
vai Maria”. Eu subo o morro, mas me canso do que ouço, Maria. Me canso.
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