segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Último dia de “inta” ou “Pede e serás atendido”

Há muito que escuto a frase “Cuidado com o que pede, pois você pode ser atendido”. A sensibilidade que desejei para 2013 veio plena, hiperbólica.
As minhas dores e as minhas alegrias me rasgaram na mesma intensidade. Descobrir que o que me acometia há mais de um ano não era o fígado ou o estômago, mas a minha vida “apenas” foi um paradoxo: impossível negar a tristeza pelo ritmo de vida massacrante, detonador de minhas dores, com a felicidade por não entrar na faca como eram os melhores prognósticos. Nem sempre consegui lidar com tudo, mas agradeço as inúmeras vezes em que apenas me permiti sentir.
Devo ter falhado muito, mas sinto que fui mais sensível ao outro e suas dores e queixas. Perdoem, queridos amigos, as ausências às vezes mais com um que com outros, não é por gostar mais ou menos; não é a distância; não são os diferentes interesses (sempre há ao menos um em comum com dada um dos diversos núcleos que hoje reconheço fazer); não é a idade (amo dos quase “inte” aos de “enta”); não são as opções políticas, tampouco as posturas frente às “minorias”, aliás, me acusam de, em sendo veemente na defesa de minhas ideias, ser igualmente tolerante com os contrários. Outro paradoxo. Gente, não é nada, é a minha vida “apenas”. Que eu tenha ajudado quem precisou, se não por minhas mãos e palavras, encontrando quem o fizesse melhor. Nem sempre consegui lidar com tudo, mas agradeço as inúmeras vezes em que apenas me permiti sentir.
Quanto ao planeta, até podemos estar mais sensíveis, todavia, parece-me faltar mais ação, individual e coletiva. Minhas ervas morreram. Tenho vizinhos que ainda não reciclam o lixo, mesmo com a coleta seletiva no prédio. Deveria ser o mínimo, não? Fora o desperdício generalizado. Nem sempre consegui lidar com tudo, mas agradeço as inúmeras vezes em que apenas me permiti sentir.
A tecnologia, inegável, foi uma aliada e muitas vezes ponto de partida para o mundo “real”: mesmo com toda a correria e restrições impostas, acho que nunca foram tão significativos os abraços curtidos, os cafezinhos e as pizzas compartilhados, as salas de estar acessadas – e os belos jardins em diferentes versões, literal e conotativamente. Podem não ter sido muitas, mas todas as vezes em que nos permitimos sentir, juntos, foram intensas as boas risadas, a troca de palavras de apoio, os choros, os silêncios.
...

Aos que acompanharam minha jornada “rumo aos ‘enta’”, agradecida. Foi muito mais que ao menos uma linha escrita por dia: foram sentimentos e ideias que me permiti dizer, escrever, publicar e outros tantos que ainda não tomaram forma, mas têm 6 décadas de “enta” para se palavrarem.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Ensaio para a vida

Não tenho direito de, autoridade ou competência para fazer crítica teatral. Se me perguntarem sobre luz, figurino, atuação, fico limitada a gosto/não gosto, achei bom/achei ruim. Mas penso que posso falar de histórias. Vividas e inventadas. E de personagens.
Na última terça de novembro, o Teatrando encerrou a temporada do “Na madrugada”, espetáculo teatral – e musical (Ave, Cazuza!) – em cujo elenco encontrei (ex)alunos. Um feliz encontro tardão, não cedinho como de costume. E diferente do costume também foi vê-los, ouvi-los ali, transformados, transfigurados. Essa é a voz dele? Que gesto este dela! Mas voltemos à ficção.
O enredo poderia ser o de muitos filmes, seriados de hoje ou dos anos 80: a esticadinha de um grupo de adolescentes após o baile de formatura. Poderia ser só isso, ou clichê, ou caricato ou bobíssimo até. Mas aquele encontro de jovens, que consomem quase todo o bar da anfitriã, vai se transformando aos poucos, se intensificando madrugada adentro. As palavras, os olhares e os gestos vão nos dando pistas dos dramas individuais e coletivos intrincados.
Como no ritual dos bailes de formatura, vão se apresentando aos poucos cada personagem. Laura, a anfitriã de primeira viagem, tão insegura que chega a se surpreender com a chegada dos amigos que ela mesma convidou. Alice e Caetano, inusitado casal de amigos, ele certinho, boa gente e ela quase guerrilheira, deslocada naquele grupo, mas nem tanto quanto pensa. Karen e Luís Guilherme, o casal que, preconceituosamente, poderia ser renomeado como Patricinha e Mauricinho. Dispensariam, pois, maiores caracterizações, não fosse o despertar da princesa Karen para o mundo real.
E como a noite nunca tem fim, conhecemos ainda um quase trio e uma dama solitária. Ingrid, a amiga fiel, com doçura oposta aos tensos gestos de quem guarda um segredo (ou mais?); Elis, acusada de tudo, vítima do inexorável; Cauê, o (ex)namorado de Elis, perturbado por aquilo que ela não conta...E Paloma, a mais “velha”, sensualmente misteriosa, desejosa da íntima verdade.

Todos querendo ver no escuro do mundo, precisando dizer que amam. Para a noite sem fim da vida breve, só mais uma dose. 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Não me durmas

Eu não quero dormir contigo hoje, amor. Não quero teu corpo, teu calor, teus afagos. Não quero tuas palavras – poucas, mas brandas -, nem teu semblante acolhedor, tampouco tua óbvia constatação de “vai passar”. Não quero tua conversa sobre outro assunto para me tranquilizar. Não quero nem o riso, nem o gozo. Hoje não quero o desvio, amor.
Queria não ter de trabalhar amanhã. Não ter de honrar meus compromissos. Não ter compromissos. Não ter precisado daquele açúcar de agora há pouco, para apenas adiar a explosão aqui de dentro, que não poderia ser pública (e por que não, amor?). Queria não ter filtro, papas na língua ou discernimento.
Quero hoje a história da humanidade, sua pior parte. Quero os maus pensamentos, os piores sentimentos. Quero essa dor, amor, dos livros, na memória reavivada, no peito angustiado, no coração dilacerado. Se eu a sentir a noite toda, será que ela acaba, amor? Se eu pensar nela, só nela, será que a aceito, amor? Será que ela me toma? Será que enfim encontro minha crueldade, amor? Será que enfim fico igual a meu irmão mau? Será que enfim a perplexidade deixa de existir em mim, amor?
Não quero dormir. Pois se durmo, sonho. Depois que sonho, acordo. Nada ou quase nada lembro. E o dia recomeça, como sempre, mais igual que diferente. E a rotina, amiga, me leva para o necessário, para o que basta, para a dor cotidiana. Não esta que tenho agora, amor, esta que quero agora, esta de que preciso agora.

Quero só por hoje não ter esperança. Quero só por hoje desacreditar no humano. Quero só por hoje não ter amor. Quero só por hoje não saber de Deus. Quero só por hoje ser nada. Quero só por hoje não ser gente. Quero só por hoje o vazio. O meu vazio. Posso, amor? 

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Quase conto, quase terror

Ele havia lido no manual que deveria mastigar bem, mais de 50 vezes, as pessoas más. Não poderia sobrar grão, mas pó. Não poderia sobrar creme nem caldo, saliva apenas, que se evaporasse antes de escorrer pela barba.
Porém, o principal era não engolir. Jamais. Isso só com as pessoas boas, que nem mastigadas seriam, já que em contato com o céu da boca derretiam-se e eram dessuavemente (ab)sorvidas.
Um dia, sem pensar nem avisar, ele engoliu uma pessoa má. E, pra seu espanto, foi como comer manga com leite ou tomar banho depois de comer. Como viver com tão macabra descoberta?
Escolheu desviver, regurgitando dia a dia cada uma das pessoas boas e aspirando em cada canto a pessoa má que cuspira.

Meu céu

Um céu hoje sem estrelas
Sem luar
Sem romance

Um céu hoje com nuvens
Com chuva
Com pesar

Mas o estranho calor desse céu
Fechado, sem luz, mudo
Insinua ser meu
E, por mim engolido,
Me consome.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Quinze estações

Benditos os que respondem a nosso “bom dia”, por educação ou atenção, mas respondem.
Benditos os que não empurram para entrar ou sair do metrô, independente de “não tem outro jeito”.
Benditos os que, se não cedem o lugar, oferecem-se para segurar nossas bolsas no transporte público, mais benditos ainda os que se levantam para grávidas e idosos (sem precisarmos pedir).
Benditos os que devolvem o troco a mais, fruto do descuido do atendente, tão benditos os que dão troco, mesmo sendo “só 20 centavos”.
Benditos os que não furam fila, não incorpando o “todo mundo faz”.
     Benditos os motoristas que respeitam as leis de trânsito mesmo quando um transgressor idiota ri-lhes do comportamento.
     Benditas as madames que, em sendo madames, tratam com respeito os seus funcionários ou quaisquer outros.
     Benditos os pais que demonstram amor aos filhos não só quando lhes compram o brinquedo desejado, mais benditos os que respeitam os filhos, sendo-lhes não só repreensão, mas ouvido.
     Benditos os não preconceituosos verdadeiros, não os que (porque!!) “até têm um amigo japa-preto-judeu-gay-gordinho-da terrinha”.
     Benditos os que não cometem crimes de qualquer natureza e benditos os criminosos que se regeneram.
     Benditos os que ascendem profissionalmente pelo próprio mérito e não por puxar o tapete dos outros.
     Benditos os que não cedem ao malfadado “jeitinho brasileiro”, ainda que sejam alvos de zombaria.
     Benditos os que são éticos sempre e não apenas quando lhes convêm, ou quando os holofotes estão acesos.
     Benditos os políticos que executam, legislam e julgam honestamente (bendito o dia em que for obrigatória uma vírgula antes desse “que”).
     Benditos os que não desistem da humanidade, mesmo quando ela confunde preço com apreço.

     

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Ao apagar as velas

Provas, livros, artigos em pilhas.
Atrasada com os prazos,
sempre curtos.
A ideia na ânsia do registro.
Papel, computador a mão.
A mão sem tempo.
Uma linha pró blog

Casórios, separações, despedidas, nascimentos.
Emocionada com as histórias,
sempre únicas.
As ideias nos papelitos.
Arquivos abertos, pastas criadas.
Primeiras escrivinhações.
Uma linha para celebrar.
Uma linha para chorar.

Politicagem, tragédias, (des)respeito, luta.
Perplexa com os absurdos,
sempre abundantes.
As ideias na tormenta.
Dicionários de sinônimos, chá de capim santo.
Palavras suicidas, oprimidas.
Uma linha sobre fulano.
Uma linha do mundo.
Uma linha para revoltar.

Dores, angústias, amores, memórias.
Encantada com a vida,
sempre imprevisível.
As ideias.
Lacunas, rascunhos, afagos, ausências.
Textitos.
Uma linha de mim que sou,
          de mim que desejo,
                 que pareço.
Uma linha de mim.
Uma linha.

domingo, 13 de outubro de 2013

(des)Amor

Confiada a ele,
Descobriu-se
Confinada.

*Publicado originalmente em Palavrarte, 30 de setembro de 2013. (http://portugues.colband.net.br)

Uma canção, não fosse...

Se falo,
     Intromissão
Se calo,
     Omissão.

Se escrevo o que penso,
     Suicídio
Se as palavras disfarço,
     Covardia.

Se salão de beleza,
     Futilidade
Se nenhuma vaidade,
     Desleixo.

Se rima,
     Primário
Se livre,
     Petulante.
    
Se empolgada,
     Ingênua
Se descrente,
     Seca.
    
Se mostro,
     Metida
Se escondo,
     Egoísta.

"Eta vida besta, meu Deus".


*Publicado originalmente em Palavrarte, 16 de setembro de 2013. (http://portugues.colband.net.br)

O bebê e a bala

Dado à luz há pouco, a sombra o roubou com o estampido.
Na mídia mais um número, na sociedade mais uma revolta. Por uma semana.

A mãe viveu morta para sempre.


*Publicado originalmente em Palavrarte, 06 de maio de 2013. (http://portugues.colband.net.br)

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Eu flor

                          Para LB e KS
Cor e perfume

Delicadeza ou exuberância

Nos cantos
Nos vasos
Nos campos

Rara, cara
Barata, comum

Para os enfermos e mortos
Para os apaixonados e felicitados

Morte certa.
Sem antes mostrar a que vim.

Inconfundível Beatriz Milhazes




terça-feira, 25 de junho de 2013

Figuraças

“Hoje eu acordei, olhei a vida e me espantei. Eu tenho mais de vinte anos, eu tenho mais de mil perguntas sem resposta”. Se me lembro dessa música é porque tenho bem mais de vinte anos. Quase quase o dobro. E face aos últimos 189 dias de “inta”, continuo me espantando com a vida, talvez por acreditar que, quando eu desencantar, não estarei mais aqui. 2013 tem se afigurado ainda mais emblemático, simbólico.
Afigurado. Simbólico. É isso! Nos últimos tempos, tenho lido muito, especialmente as pessoas: as que escrevem, por seus artigos, poemas, livros e posts facebuquianos que, ainda dizem, não devem ser levados a sério; as outras, por suas falas e atos. E eu as leio como figuras de linguagem.
Algumas são antíteses, para as quais em um dia os manifestantes são vândalos, no outro são ativistas: os opostos coexistem, em alternância (depende do que é mais conveniente a elas, talvez?).
Outras são paradoxos: seu modus operandi é defender-se atacando, amar destruindo, auxiliar cobrando, respeitar ofendendo, orar ignorando, exaltar desmerecendo, sorrir invejando, educar agredindo.
As hipérboles são as que se destemperam e perdem toda a classe e a razão em intermináveis ou calorosas – absurdas? – discussões pelo facebook. Ou ainda as que choram copiosamente com a constatação de que não têm – nunca terão! – o mundo “perfeito” vendido nas propagandas de margarina.
As silepses ocupam importantes cargos de comando, público e privado: a falta de concordância é explícita, mas elas tentam nos convencer de que o importante, o que vale, é o que está implícito.
Há ainda as metáforas: você nunca entende de imediato o que elas significam, mas é fisgado – às vezes sem perceber – pela magia contida em suas definições. E magia, mesmo para os negros, pode ser branca ou negra.
As gradações estão por aí aos montes. Umas começam na igreja e chegam à Comissão de Direitos Humanos, transformando impropérios (que não podem ser, por favor, religiosos, pois Cristo não é isso!) em liberdade de expressão, projeto de “cura gay” em proteção ao trabalho do psicólogo (oi??). Outras há que começam numa discussão – desimportante, apregoam – sobre brinquedos e a questão de gênero na educação infantil para desembocar, “filosoficamente”, na grotesca imagem das “bonecas de quatro”.
Porém as mais intrigantes (perigosas?) são as ironias: elas nunca, nunca são o que parecem ser, são sempre o oposto. Não está nelas o problema, que as melhores são, inclusive, refinadíssimas, mas em nós que não as percebemos e as acolhemos ou rechaçamos sem efetivamente tê-las compreendido.

E para quem acha que estudar figuras de linguagem é meramente identificá-las, um alerta fundamental de qualquer teoria linguística: de nada adianta classificar uma figura de linguagem se não se compreenderem os efeitos de sentido que ela provoca. Leiam-me, nesse ponto, literalmente.   

terça-feira, 18 de junho de 2013

O presente de Cauã

     Em 16 de junho, o mais novo tesouro da família Pereira (e Ribeiro de Souza) comemora outonos de vida. Quatro em 2013.
     ¾ Irmã, de que o Cauã precisa?
Cauã, tia-dinda, Sonic e É gol!
     ¾ Calça jeans. Como criança perde roupa rápido!
     ¾ Cauã, o que você quer ganhar de aniversário?
     ¾ O Sonic vem na minha festa. O Homem-aranha e o Homem de Ferro vão trazer ele.
     A tia-dinda, professora da família, obviamente dá livros. Mas o que eu queria mesmo era dar um mundo. O mundo.
     Um mundo sem mazelas de qualquer ordem. Sem drogas, concretas e abstratas. Sem politicagem, politiquices, corrupção. Sem violência, que toda ela é sem razão. Sem pobreza monetária e de espírito. Sem poluição sonora, visual, ambiental. Sem descumprimento dos deveres. Sem hipocrisia.
     Um mundo com benesses. Com amor absoluto, sem precisar de adjunto ou complemento. Com boa educação – familiar e escolar. Com consciência da diversidade (étnica, sexual, religiosa...), pois é, enfim e apenas, o que iguala um ser humano a outro (Tirem as vendas, por favor, senhoras e senhores!). Com garantia de direitos. Com respeito.
     Utopia – ingênua, piegas, podem dizer! -, pois “mundo sem” e “mundo com” coexistem, se alternam, evoluem, recrudescem.
     Então, se toda moeda tem duas faces (bendito maniqueísta clichê), que Cauã seja amoroso, consciente e respeitoso, para contribuir com o “lado bom”, mas forte e corajoso para lutar contra o “lado ruim” (perdoe, Yoda, mas não posso, por razões melanínicas, usar “lado negro da força”, não no “seu” sentido!!).  

     E que eu, querido sobrinho, não lhe deseje apenas um futuro, mas comemore seu presente. Do indicativo. E também no gerúndio.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Fui eu! Fui eu! Fui eu! (ou Clichês e Contexto)

[23h] [eles]

¾ Eu devia te colocar pra fora de casa hoje! Mas eu vou te dar uma chance: quem sabe uma noite no sofá refresca a sua memória?
¾ Mas eu...
Blam! Bate forte a porta do quarto. 

............................. 

¾ Eu juro que não sei como isso aconteceu. Eu não fiz nada. Você é o único amor da minha vida. Eu jamais te traí, nem te trairia, ainda mais agora, que estamos tão bem: casa nova, emprego novo...
 
............................. 

[19h30] 

     ¾ Ei, o que é isso? (desatando-se bruscamente do abraço). Não acredito! Quem é ela? Que cara de pau! Como você pôde fazer isso com a gente? E nem tentou esconder. Queria mesmo que eu pegasse? É isso? Nossa história termina assim, nesse descaramento? 

............................. 

[14h] 

¾ Aí, hein, cara?! Gostei de ver! O amor se espalha no ar! Pra quê vergonha, né, não?!
¾ ???
¾ Só não vai perder totalmente a compostura, viu? Conselho de amigo: você é novo no emprego, não exagera na descontração.
¾ Mas, como assim? Sobre o que você
¾ Sem crise, cara! Tô julgando não. É só um toque. Valeu?! Fui!
¾ ??? 

............................. 

[09h]  

     Por que será que elas estão agindo assim? Essas risadinhas, alguns olhares duros, questionadores, outros parecem... insinuantes! Não, é loucura minha. Mas, e eles? Mal os conheço, por que esse olhar tão cúmplice? Droga. E como é que faz essa planilha mesmo?  

............................. 

[06h40] [eu] 

     “Próxima estação Sé. Acesso à Linha 1 – Azul. Desembarquem pelo lado esquerdo do trem.” 

     Qualquer comparação que se faça – lata de sardinha, pau de arara, estufa de granja, carro de boi (sem lirismo, Rosa!) - é válida, mas insuficiente. Insuportável? E como conseguimos passar por isso todos os dias? Não conseguimos: estamos submetidos aos empurrões, cotoveladas, pisões, apertos, calor, capacidade máxima de lotação, velocidade reduzida, maior tempo de parada. Todos os dias. Às caras feias, aos xingamentos, às (quase) brigas, à falta de educação. Todos os dias.
     Mas hoje foi muito pior. Praticamente sem tocar os pés no chão e sem alcançar barra de apoio horizontal ou vertical, quando o mar de gente irrompeu, fui lançada com tal violência que, por milésimos de segundos, senti-me voando... direto a um colarinho azul-celeste impecavelmente engomado. Ei, moço! Ele nem me ouviu.
     E lá se foi, sabe Deus para onde, meu beijo involuntário no dia de estreia do vermelho terroso...  

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Nêgo de Deus!


Lindos cabelos loiros e olhos de um azul profundo. Usava uniforme. Mediu-me de cima a baixo e disse que eu não poderia ficar ali, onde era a entrada principal da loja, dessas grandes, de roupas e outros acessórios. Eu lhe disse que estava apenas aguardando um japonês amigo meu, que me ajudaria nas compras, porém ela me “orientou” a ficar em outra entrada, de serviço, daquelas que você tem de sair para a rua, dar a volta, entrar em um beco escuro. Era noite sem lua. Tive medo e, quando vi, eu já estava correndo, descalça, em uma estrada ladeada de mato alto. Meus pés doíam, meu coração apertou, quase perdi o ar.
Com bem menos elementos oníricos, já vivi essa situação várias vezes e sempre foi muito chato, embora no começo, quando eu não sabia lidar com isso, era muito pior. Como dizem que o problema geralmente não é o que você sonhou, mas por que, logo pensei que devia ser por causa de um tal Marco Infeliz que está em voga nos últimos tempos. Mas era manhã do domingo de Páscoa (o último dos meus “inta”) e a lembrança mais forte da semana era de minha tia-avó, que seguia à risca o ritual católico e nos levava junto com sua fé.
A Tina foi uma dessas pessoas que “teve o azar de ser negra”. E mais: mulher, pobre, nascida no interior de Minas, na década de 20 do século XX. Nunca vou me esquecer das histórias das primeiras casas em que trabalhou, lá pelos 5, 6 anos de idade: as “patroas” prometiam à sua mãe que a pequena ajudaria nos afazeres domésticos durante um período do dia e no outro seria levada à escola. Ela nunca pisou em uma escola. Comia os bicos de pepino e outros restos que furtivamente escondia ou pegava do lixo, porque “negro é animal”. Aos fins de semana, quando voltava para a casa paterna, silenciava ante as ameaças que havia recebido e o medo de decepcionar seus pais. Ouvi tantas vezes essas histórias, que parece que ela está aqui ao meu lado, contando-me mais uma vez: não é para você ficar triste. É para saber que isso hoje não acontece mais, mas muito ainda precisa ser feito, e tudo começa no estudo.
  Filha de mãe quase beata e pai kardecista, Tina escolheu o caminho do sincretismo, inicialmente da Umbanda e do Catolicismo. Mas no entra-e-sai na nossa casinha de tijolo sem reboco, convivi com maristas, padres, evangélicos, budistas, judeus... Aconselhamentos mútuos, trocas de receitas culinárias, tomada de decisões, orações, lembranças de outros tempos, tudo à volta do cafezinho com biscoito-trança (cuja receita perdeu-se nalguma mudança minha!)
 Pois essa mulher-negra-pobre, que aprendeu a ler com a ajuda das filhas das patroas da adolescência, que fez de tudo para que eu não trabalhasse antes dos 16, mesmo com todas as dificuldades que tínhamos (lugar de criança é na escola, sem estudar, não se é nada na vida), é o maior exemplo que tenho até hoje de coragem, honestidade e justiça. Demorei muito a entender a necessidade – e perder a vergonha! – de voltar ao açougue, com o pacotinho de meio quilo de carne, e dizer Moço, isso não é acém, eu pedi carne de segunda, não sebo e restos!
Se o que trago em mim hoje é herança de uma “terra amaldiçoada” (que bíblia é essa, meu Deus?) ou “azar”, Vossa Excelência nunca deve ter entendido o que “dizem” os versos “deve ser legal / ser negão no Senegal”. E só um aviso: hoje meus pés não doem, meu coração infla e o ar me sobra.  
Janeiro de 1995: ingresso na USP

sábado, 9 de março de 2013

Diaba Magreza, Santa Saúde [ou o Dia Internacional da Mulher nos 298 dias dos "inta"]


Salve, Magreza, mãe da Finura, manequim 36, o docinho? A academia nossa salva! A vós bradamos, as ansiosas filhas da Gula (e do Estresse). A vós suspiramos (mais açúcar!), comendo e sofrendo nesta deliciosa churrascaria [e pizzaria e pastelaria e rotisseria e padaria]. Ide-vos, pois, inquisitora nossa, esses vossos olhos acusadores de nós desviai, já que nos afastar da obesidade mórbida não pode significar deixar-nos anoréxicas. Ó balança, ó cintura, ó colesterol, que o Equilíbrio reine.
Rogai por nós, Santa Saúde, para que sejamos saudáveis e felizes com nossos quilinhos. Amém!

Post Oratio: mulheres, na boa: depois de queimarem o sutiã, virarmos escravas da magreza é o fim da picada!

sábado, 2 de março de 2013

Escrever


Eu quis escrever sobre o primeiro fim de semana do último ano dos “inta”. Eu pensei em escrever sobre o primeiro almoço de família dos 39 anos. Eu quase escrevi sobre o segundo casamento de meu pai, exatamente 40 anos depois do primeiro.
Eu deveria escrever sobre os primeiros dias de aula do 3º. ano, com alunos, que, pela primeira vez, desconheço totalmente, já que não mais sou professora do 1º. ou do 2º. ano. Eu poderia ter escrito sobre uma oficina ministrada por um admirável colega “profepesquisador”, momento raro em que toda a equipe de professores de português pudemos trocar ideias e experiências sobre nossa prática, angústias e futuro.
Eu me imaginei escrevendo sobre a primeira (que seja a última!) botinha de gesso do meu sobrinho e minha crise por não ter conseguido vê-lo, sufocada que estava (estou?) pelo trabalho.
Eu precisava escrever sobre os desrespeitos que sofri, neste plural estranho como foram as situações e talvez mais ainda precisasse escrever sobre como lido com as desculpas (sou boba por aceitá-las?).
Eu desejei escrever sobre o carnaval na montanha e meu banho de cachoeira há muito adiado. Eu ainda quero escrever sobre as amizades novas e antigas, mas que igualmente me pressionam, intimam e ameaçam por não terem, como quereriam, minha companhia.
Vista do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo
Eu ainda posso escrever sobre o dia de hoje, uma pausa – mesmo forçada – na lufa-lufa da rotina do trabalho para, com três companheiras de magistério, revisitar Mário de Andrade em sua Pauliceia muito mais desvairada.
Eu ainda preciso escrever uma linha por dia não destinada apenas a enviar imêis, produzir provas, listar itens que se acumulam sem serem “ticados” ou fazer anotações – muito esparsas – para a dissertação de mestrado.
    Eu ainda vou escrever sobre meu medo de um dia acordar e, não me lembrando mais de nada, não ter quem me leia minhas memórias ou, bicho-papão maior, não ter registro de minhas lembranças.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Últimos 362 dias de "inta"

     Meu hoje: 03-01-2013
     Relato em dois atos:
     Um: Metade do dia "desperdiçado" com aquela dor de cabeça infernal que continuou à noite toda, tomou a cervical, a mandíbula e o redor dos olhos. Após um remedinho e um capotamento, foi-se, mas restou uma série de espirros.
     Dois: Metade do dia aproveitado com a resolução do caso daquele móvel e compras de complementação no açougue.
     Ficção: estou escrevendo "hoje".
     Conclusão: Tina* diria que nada melhor que um dia após o outro com uma noite espremida no meio. (Às vezes funciona, outras...)

*Tina não é um nome ficcionado, mas encantado.

Últimos 363 dias de "inta"

     Meu ontem: 02-01-2013
     Relato: entrega de um móvel que não deu certo; telefonema e ida à loja para renegociar; tensão, aborrecimento; compras de mercado no início da noite; uma dor de cabeça infernal como companheira o dia todo.
     Ficção: nenhuma.
     Conclusão: Dia quase inaproveitável ("quase" decorre de me ser impossível acreditar que nada se aproveita de / em um dia na vida).

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Últimos 364 dias de "inta"

     Há dois ou três meses "perdi" a chave do armário que tenho no colégio, aquele armário em que muitos alunos acreditam que eu fico guardada até o sinal das 7h e para o qual retorno às 12:30 ou 18:30! Digo "perdi", pois eu a vi de relance em casa dentro de alguma bolsa, pasta ou maleta revirada várias vezes sem sucesso. Não lamentei (tanto), pois vi no episódio uma oportunidade de treinar o "desapego aos elementos materiais"!
     Pois hoje de manhã, arrumando a maleta de volta para Sampa, após passar metade do último aniversário dos "inta" em Santo Antônio do Pinhal e a virada em Campos do Jordão com direito a queima de fogos e um céu noturno apinhado de estrelas de balões brancos (lindo!), encontro a dita chave! Diria uma grande amiga, a Quíria Eliwal*, que isso é um sinal!
     Racionalmente, sinal de que preciso prestar mais atenção às coisas, uai! Mas, como é 1o. de janeiro e a emoção toda de um recomeço está determinando o clima interior, prefiro interpretar o sinal de outra maneira: não seria o primeiro de muitos reencontros - com coisas e pessoas - que posso viver neste 2013? Resgatar aqueles telefones para os quais não ligo há séculos, dar um olá por aquele imêi guardado há tempos na lista de contatos.
     Dois medos.
     Um: "Cátia? Cátia de onde? Cátia de quê?" A pessoa pode nem se lembrar mais de mim, mano! Talvez o laço, o vínculo que penso reatar nem exista mais... Ou exista lá, naquele período da minha vida, como a calça boca de sino data dos anos 1970 e qualquer revival é passageiro.
     Dois: nenhuma resposta do imêi. Não é o imêi que volta, por estar errado, é aquela resposta que não vem. Então começam as caraminholas: a pessoa não viu o imêi perdido em tantos outros que deve receber; como ela já não tinha o meu endereço, o imêi caiu na caixa lixo ou quarentena; a pessoa não tem tempo de responder; não se emocionou tanto com o reencontro; não me quer mais em sua vida, e o silêncio é o sinal disso. 
     Ainda bem que tenho muitos dias para buscar esses reencontros (e principalmente para tomar coragem de empreendê-los antes de desistir da ideia!).

*nome ficcionado