domingo, 31 de dezembro de 2017

Dezembro

Todo dezembro a Tina me leva para uma igreja, seja para assistir a uma missa ou não, sem que eu me planeje: quando vejo, estou dentro do templo. Às vezes só para ficar lá um pouco, ajoelhar, rezar, sentar. Lembrar, chorar, agradecer, pedir. Olhar, chorar mais um pouco, me recompor. Fazer o sinal da cruz em genuflexão e sair.

Ela sabe que não vou sempre, às vezes quase nunca, embora reze praticamente todas as manhãs, menos naquelas em que estou atrasada. Rezo daquele meu jeito que as catequistas que tiveram a felicidade de serem minhas professoras adoram: em qualquer lugar, sem seguir os scripts das preces (embora eu saiba quase todas e tenha toda a liturgia da missa na ponta da língua) e sem linguagem solene. A maior heresia da preta pré-adolescente foi ter a petulância de dizer que se Ele está em todo lugar, por que não posso rezar pra Ele quando estou no banheiro? Com certeza isso chegou esbravejado aos ouvidos da Tina, mas não me lembro de nenhuma reprimenda, lembro antes de comprarmos velas – eu queria de todas as cores sempre, mais para admirar que para usar – e acendermos em algum canto no alto da parede de tijolo à vista ou do quintal, dependia da ocasião, mas quase sempre com um copo d’água do lado, um pires com papeizinhos, mel, açúcar, às vezes fitas coloridas... Vez ou outra uma imagem de um santo católico ou de um guia da Umbanda era também iluminada por aquela pequena chama. Invariavelmente, Tina rezava. Acredito que todos os dias. Serena, mas concentrada, firme. Ritual silencioso quase sempre, vez ou outra cantarolado com um ponto, um canto ou uma melodia qualquer que eu não distinguia, porém me acompanhava o dia todo. Dentro da minha cabeça.
Todo dezembro, a Tina me leva para uma igreja. Ela sabe que aquela menina tímida, receosa, medrosa até de brincar na rua, que preferia ficar enfiada nos livros, era bocuda quando o assunto era religião. São muitas as situações em que retrucava com alguém da igreja, uma lista quase interminável, mas centrada nos usos e costumes. De que adianta ouvir a homilia do padre e na saída da missa xingar a criança “de rua” que está na porta da igreja, às vezes só sentada, brincando? O que tem a ver a roupa que uso para ir à igreja? Foi Jesus que disse o que pode e o que não pode? Quem, como, quando entra na igreja? Tá escrito na bíblia onde? Não era diferente no Centro da madrinha Avelina lá no Itaim Paulista. Por que algumas pessoas fingem que estão incorporadas? Acham que a gente é besta mesmo? Ela não veio aqui pedir ajuda? Por que trata tão mal as pessoas daqui? Por que criança não pode ficar nessa gira mesmo? E mesmo quando silenciava na presença das pessoas, não fechava a boca em casa e lá ia a Tina explicar uma passagem da bíblia, o ritual de alguma entidade e a função da cambone. Quase sempre com paciência e outras tantas com o encerra-papo “você vai entender melhor quando crescer”.  
Todo dezembro a Tina me leva para uma igreja. Ela sabe que nunca gostei daquelas imagens, embora adore as histórias dos santos e santas, menos pela santidade em si, mais pela humanidade desses seres, pela curiosidade de quem diz que são santos e por que cargas d’água o são! As imagens doridas sempre me assombraram, aquele Jesus pregado, ensanguentado...eu ficava triste. E o “Ele morreu para nos salvar” me soava como Ele está lá por nossa culpa (minha?). Como ser feliz com Ele assim? Então eu preferia conversar com Ele de boa, na minha “língua”, sentado do meu lado na cama mais alta da treliche, balançando as perninhas no ar, ou tentando entender o que eu falava enquanto escovava os dentes com água esquentada na canequinha nos dias mais frios. Com as entidades era mais difícil, porque eu pouco entendia o que os caboclos falavam... Então eu preferia imaginar, mas no dia da gira tinha medo de algum deles me confrontar e brigar com os meus pensamentos.
Mas todo dezembro Tina me leva para uma igreja. Apesar de todas as minhas críticas infanto-eternas, sempre me sinto bem lá dentro. Nem sei se “bem” é o advérbio certo. Sempre choro, primeiro de horror pelas atrocidades que fizeram "em nome de Deus", descortinadas na escola, na literatura. Depois choro de dor pelas perdas, afinal, mesmo entendendo pela umbanda que há outro plano iluminado para as almas com quem um dia reencontraremos, aceitar que o corpo se vá e eu não mais escute sua voz é sempre muito difícil. Nem Ele nem Elas me explicaram isso, de maneira convincente. Só a Ciência (falência dos órgãos, complicação da cirurgia, doença incurável) ou a Razão-Acaso-Descaso (batida em alta velocidade, raio, deslizamento de terra). Difícil se conformar com o “esse é o caminho natural” ou o sarcástico mal gosto “para morrer basta estar vivo”. Quando o choro cessa, rememoro o ano e agradeço por tudo, até os momentos ruins, que me fizeram aprender alguma coisa e crescer, de algum modo, mesmo que eu ainda não saiba qual é. Em seguida listo todos os nomes que estiveram presentes nas minhas preces matinais, todos e todas que precisaram de ajuda com algum conflito ou crise familiar, financeira, amorosa, de trabalho, de saúde, existencial. Aproveito e peço pela saúde de nossos médicos e psicólogos, que precisam de lucidez pra cuidar da gente. E peço por todos e todas poetas, todas as escritoras e os escritores, que pelas palavras (re)constroem esses nossos mundos reais e imaginários. Por fim volto a chorar de plenitude, que não sei explicar de onde nem por quê. Faço o sinal da cruz em genuflexão e saio. Todo dezembro. Com a Tina.

31 de Dezembro de 2017, da série “Ciclos”.