sexta-feira, 5 de outubro de 2018

4 de outubro


Já faz um ano de nossa despedida
Envolta em dor, dúvida e angústia
Agora seguimos, juntos,
Nós três com saudade de nós quatro.

Podia você miar atrás da porta?
Insistir no pedido de papinha?
Escrever com meu teclado em sua língua felina?
Raspar o tapete e sair fugido?
Ronronar no meu colo?
Embalados por sua memória-presente, vivemos.

domingo, 30 de setembro de 2018

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Na raça


                        (Inspirado por Miriam Alves)

Cada minuto conta
Cada segundo contra
Monotema
Que o agora é sempre

Que corrente pesa mais?
Ferro?
Cárcere?
Social?
Psico soma o quê?

Quem dera fosse minha cabeça:
Resolvo,
Esqueço,
Nunca existiu.

Fibromialgia não é poesia
Nem rima com crônica
Só é dor
Persistente
Tal a notícia diária:
Mais um
Mais uma
Tudo Negro:
Em prisão
Em humilhação
Na surra
Na morte
Fora da fila da escolha
Fora da lista da escola

E se fura a estatística,
Palmas ao mérito,
Troféu e exemplo único:
"Basta querer".

Não quero essas palmas
Esse sorriso pérfido
Esse elogio quando eu doce
Ao eu-ser fora da curva.

Sou pelo povo preto
Que me trouxe
    me é
    me virá

Cada minuto conta
Cada segundo contra.

Canso. Quero dormir. Preciso.
Mas não paro
Se mais um
Se mais uma
Tudo Negro
Ainda tomba.

E levanto-nos
Pela vida negra
          de aqui      de agora
Que seguro pela mão
De entidade.

domingo, 3 de junho de 2018

Poema sem Luz



Sombras sobre a história
Recuperada pela restauração 
- ainda não -
Até nova destruição
Pelas mãos do descaso
O mesmo que
No entorno do museu
Apaga a olhos nus
- dessensibilizados -
Vidas muitas,
Estatísticas
do jornal de ontem.

Catita, 02-06-2018

domingo, 13 de maio de 2018

13 de maio


Hoje é um domingo como alguns outros anos que todos nós já tivemos, mas eu e meus irmãos vivemos de modo mais marcante. 13 de maio para nós é uma data muitas vezes tripla: dia da Abolição da Escravatura no Brasil (1888), dia das mães (sempre que cai no segundo domingo de maio) e aniversário da Tina, a tiavó que nos criou (nascida em 1925). Três datas que hoje – algumas desde antes - são incômodas.

Da Abolição

Não sei o Sandro, mas a Fabiana e eu tivemos, cada uma em seu momento, crises agudas com a escola e a maldita “comemoração” do 13 de maio. Todo ano do primário (hoje Fundamental I), invariavelmente, tínhamos de pintar um desenho mimeografado, sim, já passamos todos dos quarenta, somos da época daquele álcool inebriante na sala de aula e raríssimas folhas em branco para desenhar e pintar o que quiséssemos à mão livre. Na embriagada folha, empoçada às vezes, bem mal feita, mas centralizada, a figura de um escravo liberto. O corpo desnudo obrigatoriamente devia ser pintado de marrom, pois o preto encobria os demais traços do desenho e as professoras diziam que “não dá pra ver nada se pintar de preto”. Também não dava para pintar de “cor da pele”... Pele das bonecas, das figurinhas, das crianças dos filmes, das pessoas das novelas, das crianças fora da família. O farrapo de calça deveria ficar branco, no máximo um amarelinho, marrom pintado com pouca pressão dos dedos ou acinzentado, feito com pó do grafite do lápis de escrever circulado cuidadosamente pela pontinha do dedo indicador, afinal, não tinha cinza na caixa de 12 cores do lápis de cor. Tudo porque precisava aparentar sujeira e miséria, já que as roupas eram feitas de sacos e eles, os escravos, viviam em péssimas condições. Não tinha chãozinho, nenhuma graminha ou florzinha colorida sequer, um céu azul e sol poderia ser até sugerido pelas cores, mas não estavam desenhados, então “você não está pintando certo” (lembro de, pelo menos uma vez, ter feito a chuva). Não tinha cenário ao fundo, no máximo a corrente partida, muitas vezes em plano maior que o escravo, com a data e a nomeação, que eu contornava de canetinha vermelha, que eu não emprestava para nenhum bruto calcador de ponta, descuidado com a caneta alheia, a qual deveria durar o ano letivo todo. Vagamente lembro de ter o nome ou o rosto da tal princesa salvadora no canto da folha. Quando comparava a outras datas, outros desenhos, tudo isso incomodava bastante, mas nada nada nada era mais irritante que o cabelo: a brilhante, batida e ofensiva ideia das professoras era colar bombril no topo da cabeça do escravo. Claro, cabelo de preto é duro feito palha de aço, nenhum material melhor a representá-lo. Era só olhar para as minhas tranças, tocar nelas que eu perceberia como a fibra era áspera, rebelde, tal o bombril. Não podia ser uma lãzinha preta não, professora? Eu sabia fazer os rolinhos... Nós e alguns poucos amigos negros tínhamos de viver essa maravilha todo santo 13 de maio! Poucos, pois embora tenha estudado na escola pública a vida toda, num tempo em que ainda havia certa qualidade, poucos eram os negros que a frequentavam e quanto mais eu avançava nos estudos, menos via meus iguais “de cor”, como ainda éramos designados. Sempre desconfiei daquela história que era contada nos livros, do quanto tinha de agradecer à tal princesa, do quanto os escravos isso, os escravos aquilo. Os escravos. Os negros, os pretos, é conceito ressignificado – fora do espaço doméstico – muito muito tardio.
Hoje, 13 de maio de 2018, já lá vão 130 anos de Abolição.  E nós pretos, nós negros seguimos na luta ainda para sobreviver. Se não há avanços? Sim, muitos. Mas quanto tempo e consciência também dos não-negros ainda são necessários para deixarmos de ver retrocessos todo dia, nas escolas, nas ruas, nas conversas de bar, nas artes, na mídia, nas notícias, nas universidades, no trabalho, nas lojas, na política...? Quantos de nós ainda tentarão invisibilizar? Quantos de nós tentarão ainda silenciar? A quantos forem, vamos mostrar e gritar que estamos aqui, em pé, juntos. E seguindo.

Do Dia das Mães

Naquele tempo e ainda hoje em muitas escolas se comemora o dia das mães, desde apenas com uma “lembrancinha” feita pelo aluno, geralmente com uma pequena contribuição da família para o material usado, até com uma festinha, dancinhas, musiquinhas, decoração e presença das mães no recinto. Pois bem, eu e meus irmãos tivemos sempre de explicar que não tínhamos mãe. Os olhos da professora e de alguns dos coleguinhas se esbugalhavam, como se tivéssemos dito alguma blasfêmia. E como ficar pior? Bastava dizer que ela morreu quando eu era bem pequena. Meu irmão tinha só 21 dias de nascido. Aí as expressões se entristeciam e o inevitável “coitadinha” vinha. Mas isso não surtia qualquer mudança no desenho mimeografado com a palavra “mãe” ou “mãezinha” inscrita. Palavra que eu nunca disse. Tina sempre fez questão de contar nossa história, de deixar claro que não era nossa mãe, que era tia do nosso pai, a quem ajudou a criar e que cedo casou, mas cedíssimo enviuvou. Para manter a família unida, reza a lenda, Tina “pegou os quatro de volta” e terminou de criar todo mundo, somando na casa o salário de empregada doméstica dela e o de metalúrgico do meu pai. E todo dia operando o milagre da divisão, raras vezes o da multiplicação e sempre convivendo com o fantasma da subtração. Cada um de nós teve de aprender a lidar com essa falta, com essa ausência praticamente sem ter sido presença, da mãe Terezinha, cujas poucas histórias eram contadas mais pela Tina que pelo pai ou talvez até mais pelo quadro na parede, a nos lembrar sua cor, seu sorriso, seus cabelos, seus sonhos, sua roupa anos 1970! As lembrancinhas da escola iam para a Tina, claro, mas eu quase sempre fazia um bilhetinho à parte, em que podia escrever “Tina” bem bonito e agradecer de forma mais eu que as trinta e poucas, quarenta lembrancinhas iguais da escola.
Hoje, faz 19 anos que não tem bilhetinho, nem presente, nem flores, nem almoço especial, nem mesmo um telefonema para a Tina. Se eu estivesse na escola e fizessem a festinha, teria de relatar agora duas mortes. Consola que em minhas preces e atos elas estão presentes, às vezes mais uma que outra, mas gratidão igual às duas por realmente darem a vida por mim e pelos meus irmãos. Nas preces e nos atos também a defesa para que a escola seja realmente um espaço de acolhimento, não de exclusão, que não “comemore” de forma tão impensada tantas datas, desconsiderando as diversidades todas existentes, as histórias pessoais já suficientes para quebrar o padrão, do que “é normal”, do “sempre foi assim”, de que o diferente supera, “a gente é forte”. A custa de quê, de quanto?

Do aniversário

    Acho que essa era a única data que realmente importava! Não tinha intervenção da escola, embora bastante impedimento financeiro. Não me lembro de dar presente para Tina quando criança, possivelmente porque era o pai que comprava e nós dávamos juntos. A memória da família é a Fabiana, estou até ouvindo-a dizer “mas como você não lembra, irmã?”. Eu lembro de adolescente, já trabalhando em escola infantil, de comprar um corte de tecido, uma “fazenda” como se dizia, para eu fazer ou mandar fazer vestido para ela. Era um presente que gostávamos de trocar. Ou eu tricotava uma touca ou cachecol para ela. Mas o que não esqueço mesmo é de me ver escrevendo sempre para ela, desde criança. “Que tanto você escrivinha aí, menina?” “Sabe que escrivinhar não existe, né? É escrever. Nunca deixe de estudar”.
Hoje não tenho certeza se isso é memória vivida ou criada, mas que a ouço dizendo, ouço! Mesmo jovem, quando “a faculdade virou” minha cabeça! E há dezenove anos não tem presente, nem fazenda, nem carta. Mas, relatados também pelo caçula, tem angústia, aperto no peito, dor de barriga, insônia, vontade de chorar... Uma semana antes do dia 13 de maio. Que passa, quando o escrivinhado fica pronto.

13 de maio de 2018, da série “Tirem as vendas, senhores”.

sábado, 3 de março de 2018

Choro vicioso


Para uns, desequilíbrio
Para outros, sensibilidade
Para mim, nada de rótulos
Só preciso dizer que chorei hoje.

Chorei quando a chuva caiu
Chorei junto com a chuva
O porquê não me veio
Ou umedeceu meu crespo

Escorreu

Não pude segurar
Há tempos não entendo.
Ou entendo.
Por isso eu choro?
E chorar é ceder?
É ser fraca?

Engolir o choro queima
Estrangula a alma.

Quando o choro finda,
Me sinto mais forte.

Mentira, fico puta.

Catita, 02-03-2018 (da série “Ciclos”)

Ciclo vicioso



As palavras perturbam na mente, cutucam a língua, querem sair.
Mas as mãos estão ocupadas escrevendo as prioridades da vida prática, enquanto o coração se aperta sem entender o que são prioridades e vida prática.
E o peito sangra, chora por não ter dedos.
E a cervical sente a autocobrança da autopromessa de não mais negligenciar os escrivinhados.
Não consigo engolir nada.
E as palavras perturbam na mente, cutucam a língua, querem sair.

Catita, 24-02-2018, no conflito de seus eus em sis.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Enfrentar o(s) monstro(s) cotidiano(s)

Ao pegar o Cadernos Negros, v40, para fazer a croniresenheta da semana, eu me dei conta de que não tenho um critério de escolha do conto a ser lido. (E agora vocês se dão conta de que a proposta é escrever uma por semana – quinzena? -, se tudo der certo!) Li primeiramente os da Mari Vieira, pois dos 42 autores e autoras, ela é a única com quem tenho vínculo de amizade fora do mundo virtual. Passei os olhos pelo sumário – os títulos sempre me atraem - , folheei a minibiografia dos autores, mas acabei abrindo o livro tal fazia com o Minutos de Sabedoria que ganhei da Tina: segundos de silêncio, respiração profunda e abertura de sopetão, para ler na página que cair. “Caiu” em “Arial Black”, de Adilson Augusto.

O conto abre com duas frases bem curtas que possivelmente já tenhamos usado em algum momento da vida e desmentido em outros inúmeros: “Raramente mudo. Difícil mudar”. Mas antes que entremos em uma reflexão existencial ou psicológica, o próprio narrador nos chama à Terra novamente: “Sigo o meu cotidiano. Ele é muito duro. Pintar paredes exige paciência.” E segue uma descrição minuciosa, pictórica mesmo, sobre esse ofício. Você se encanta e, antes mesmo de terminar o parágrafo, divaga e se encaixa em um dos possíveis três grupos de pessoas: as que nunca pintaram uma parede, as que uma ou outra vez na vida fizeram isso e as que o fazem todos os dias. Meu profundo desejo – utopia? -  é que esse último possa ter mais acesso à leitura, ou melhor, que possa ter tido o direito de aprender a ler e que tenha a oportunidade de poder ler o que queira.    
Novamente o narrador-protagonista nos tira da digressão, corta a rotina e insere uma jovem personagem, de maneira inusitada, quase non-sense, não fôssemos nós conhecedores dos adolescentes em geral. Mas nossa adolescente, vizinha da reforma em que nosso pintor trabalhava, não estava ali apenas para ajudar, e entre ímpetos e rodeios tipicamente misturados, ela indaga sobre o pai. Sobre o sumiço do pai. Sobre o por quê. E porque Adilson Augusto constrói uma aura de mistério pelo tripé pensamento-sentimento de surpresa do pintor, monólogo fuga do tema da garota e ação mecânica-incômoda da pintura da parede ali presente, você divaga, caro leitor, já alimentando uma certa raiva por mais um caso de ausência paterna, como tantos que temos na vida real, que nos indignam independente do momento desse abandono. E nós começamos a pensar em quanto essa mãe deve ter sido forte para cuidar da cria sozinha, no quanto ele deve ter sido canalha ao não pagar a pensão, no sofrimento que causou a todos os envolvidos. Se você for uma cara leitora, é provável que tenha o grau de indignação aumentado. Sem querer polemizar, caro leitor, mas já ouvimos muito (sentimos?) sobre uma certa parceria ou “solidariedade” masculina cuja identificação com histórias assim se constrói negativamente, sob defensiva. E desculpas frágeis. Injustificáveis.
Mas se o incômodo já está grande, desculpe o dissabor ainda maior... Tal lixa d’água em ação, sendo a parede o nosso rosto, revela-se que o mistério sobre o sumiço do pai da garota, amigo de nosso pintor, envolve uma quase certeza de ser o progenitor um abusador. Confesso que tive de parar um pouco a leitura, Adilson, como paro todas as vezes em que leio ou ouço uma notícia sobre estupro. Todas as vezes. Todos os dias. O que é divulgado, né? Os índices oficiais de 2014 mostram que no Brasil a cada 11 minutos ocorre um estupro. A maioria das vítimas têm até 19 anos. A maior parte, vulnerável. Mas se especula que seja muito mais, pois muitos casos não são notificados, denunciados, sabidos. Abuso sexual, estupro, essas palavras me paralisam por segundos. Me indignam sempre. Me enojam. É a vida de mulheres, muitas delas crianças, destruída definitivamente, quando “seguido de morte”, ou com sequelas que nenhuma “superação” apaga.
Antes de começar a ler o conto, eu havia acabado de saber do caso mais recente, amplamente divulgado porque uma câmera de rua registrou a espreita do estuprador, sua agressividade com a vítima de 19 anos, levada à força para o banco de trás do carro e tendo uma arma apontada para sua cabeça por aproximadamente longos 30 minutos. Logo pensei em coincidência ler o texto justamente nesse dia. Mas a Tina diria que coincidências são mensagens que nos chegam por outros caminhos, o difícil é interpretar. Tina trazia em sua bolsa um alfinete grande, desses de fralda, preso e envolto discretamente num paninho. Incomodada por algum idiota no transporte público, ela não tinha dúvida: sacava sua arma e alfinetava a parte que lhe tivesse ao alcance. Ela disse que não teve de usar muitas vezes, mas em todas os caras saíram de perto dela, sempre sem dizer uma só palavra, mas alguns lhe lançavam um olhar de ódio. Tina ensinou isso, técnica que usava desde jovem, logo que “tomei corpo”, lá pela segunda metade dos anos 1980. Queria muito saber o que ela diria hoje, nos 2018...
Refeita um pouco pelo conforto da lembrança de Tina, retomo a leitura e me dói mais essa nova lente, direcionada às vítimas “indiretas” desse pai nosso sumido: a esposa e a filha, essa jovem que parece querer construir outra história sobre seu pai, uma que não a atormente. Uma que a deixe seguir sua vida. Amar sem medo. Sem essa nebulosa sobre seu passado. Sobre os homens. Mas como ignorar a revelação-faca de nosso amigo pintor “Teu pai cometeu um crime.”? Como lidar? Como continuar pintando a parede? Não sei. Só posso dizer que, diferente do nosso amigo pintor, a gente muda sim.
A primeira vez que um homem desconhecido me exibiu seu membro fálico sem meu consentimento num lugar público foi numa tarde rotineira de estudos no Centro Cultural São Paulo, na Vergueiro, na adolescência. Eu fiquei primeiro sem ação alguma, só havia olhado para ele na mesa ao lado, pois, segurando o livro na mão, ele tinha feito alguma pergunta que eu não entendi direito. Só consegui juntar minhas coisas e mudar de lugar. Fiquei por ali um tempo, calculando qual seria o melhor momento de ir embora. Pensei em falar para a funcionária da hemeroteca, mas não consegui. A vez mais recente, queria dizer a última, mas seria ingenuidade minha, foi em 2016, já adulta, numa manhã de domingo no Parque da Mooca, enquanto corrigia redações na grama. Ele já havia passado de um lado para o outro, com sua bicicleta, se alongava numa das árvores próximas, parecia-me, quando perguntou as horas. Se os rostos não são conhecidos num parque, a aura do espaço é de tranquilidade. Levantei meu rosto para lhe dizer as horas, quando ele prontamente pôs seu membro pra fora. Mas dessa vez eu gritei, ele fugiu correndo, eu contei a tantas pessoas quanto eu pude. A gente muda sim, se fortalece. Só o nojo é o mesmo.

Cadernos Negros, volume 40: contos afro-brasileiros. Organizadores Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa. São Paulo: Quilombhoje, 2017, p. 31-35.


Catita, 27 de janeiro de 2018, croniresenheta (2) do conto de Adilson Augusto: "Arial Black".

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Memórias e desejos


Você ouve histórias de seus pais e outros familiares quando criança e muita coisa fica registrada, nem sempre lembrada. Mas às vezes há um gatilho que as aciona. Você, se teve esse direito garantido, vai à escola, aprende um pouco de tudo, se encanta por algum conhecimento, e esse ou outros acabam virando sua profissão ou se tornam seu desejo a perseguir. Quando eu ouvia na escola sobre poetas e escritores - muito mais "os" do que "as" sempre -, ficava imaginando o longínquo desejo de também viver essa "fraternidade literária", de conhecer e conviver com escritores, ousando ser uma deles. As falas dos pais, realistas (ou duras?), mas pra nos dar casca a aguentar os trancos do mundo, ecoam um "nem sempre você realiza seu desejo, muito menos como ou quando quer". 

     Mas e quando a gente consegue? Ainda que não como pensou, nem quando, porém mesmo assim de uma forma linda? Esse é o momento aqui-agora-meu-nosso: conheço poetas, escritores e escritoras (muuuuitas), algumas com maior ou menor intimidade, e "me aceitei" como escrivinhadora também, bem mais tarde que muitas das que conheço hoje, mas com igual vontade de deixar um pouco do nosso ser-olhar-sentir nesse mundo em forma de palavra. E no meu caso específico e no de alguns desses e dessas, somos pretos. Somos pretos e pretas que escrevem. Não sei se você pode ter a dimensão do que seja isso: muitos de nós não só suplantamos as adversidades pelas quais passamos (antes e ainda agora), nós demos mais um salto, nós escrevemos e nós estamos publicando. É nosso ato. Político e vital. Por favor, só não festejem dizendo que "o mérito é todo nosso", pois isso não nos é elogio. 

Dia 16 de dezembro de 2017 é uma data histórica, pois fora lançado o volume 40 dos Cadernos Negros, com contos de 42 escritoras e escritores negros. "Volume", no caso, significa "ano", senhores: quarenta, assim, por extenso, quaaa-reeen-ta anos de publicação de contos e poemas de autoria negra. Você pode nunca ter ouvido falar, mas não pode mais dizer ou aceitar que digam que há poucos escritos de pretos e pretas. Os textos podem não ter chegado a você. Por quê? Tente responder. É meu convite sempre e agora de novo a partir dessa minha primeira "croniresenheta". Aquele 16-12-2017 foi uma festa só e entre alguns nomes conhecidos de outros volumes, dos saraus e da internet, estava o da amiga Mari Vieira. Amiga por acaso, desde maio de 2017, por ocasião de uma das atividades da Ocupação Conceição Evaristo no Itaú Cultural em São Paulo. Foi amizade à primeira vista, por razões que só mais tarde fomos descobrindo e ainda haverá muitas, eu sinto. Desde então, fomos juntas à memorável Flip 2017, tivemos outros encontros, menos do que gostaríamos (ambas professoras), trocamos mensagens com frequência, indicações de chamada pra publicação. Nós nos apoiamos, nos fortalecemos, como fôssemos amigas de infância. Ficamos perplexas, angustiadas ou raivosas com certos episódios. E nos movemos. Seguimos.

Por acaso do destino, pra quem acredita que seja acaso, só hoje li os contos da Mari. Aqui em Paraty, no meio do mato, ao som dos passarinhos e das crianças correndo. "Fia, a Mãe e a Avó" começa com a cena do abacateiro e a apresentação de Idalina, a Fia, já em seu instigante encantamento. Na minha segunda casa da infância havia um abacateiro, palco e personagem de muitas histórias. Como não se identificar com a escrita da amiga, não pela amizade só, o que já é muito, mas com a infância que ela me traz à tona no primeiro parágrafo? Ah, você não teve um abacateiro em seu quintal... Sinto muito. Mesmo. Sem ironia.

Fia e as amigas vão tomar banho de rio e de novo as memórias de infância me arrebatam. Não, não vivi em mim essa situação, na periferia da ZN de Sampa havia cipó e chão de terra, mas não rio. Vivi pelas histórias da Tina, de seu nascimento mineiro e vivência no interior de São Paulo. E Mari é o quê? Mineira dos "longínquos cantos do Vale do Jequitinhonha", como está em sua minibiografia inscrita no livro.

Estivéssemos em aula agora, qual resumo do conto? "Fia, preta retinta de tranças, toma banho de rio com as amigas." Engano parar nesse superficial resumo, pois desse mote-cena, o cerne são as memórias de Fia, sobre sua mãe e sua avó, rica e sensivelmente construídas na narrativa, na natureza daquele rio, pedras e abacateiro que as corporificam e as unem a Fia. Falar mais é roubar de você o encanto da leitura-construção gerada pela escrita-respiração da autora. 

"Ana Horizonte" já começa deixando você na curiosidade pelo título... Um texto com nome de nome próprio sempre instiga: quem é que eu vou conhecer agora? Quem que teve a chance de ler apagou da mente nomes como Hamlet, Augusto Matraga, Ponciá Vicêncio ou Ana Davenga? Pra ficar nos que me lembro assim de pronto, sem dar um Google! Pois o horizonte de Ana, da Mari Vieira, é polissêmico. É de sua cidade natal, mas também de sua estratégia para lidar na infância com um pai fumaça e também o é da vida que escolheu - ou que lhe foi possível - como empregada doméstica, esposa e mãe, em outra cidade, longe ainda mais. A relação de Ana com a patroa me remete de novo às histórias da Tina, os detalhes que diferenciavam as patroas boas das más, a gratidão e a indignação nem sempre tão claras, tão separadas. Como com Fia, Ana, Tina, Mari ou Catita, passado e presente se mesclam e o futuro é um depois a ser contado à nossa escolha, como um antes ou um agora.



Cadernos Negros, volume 40: contos afro-brasileiros. Organizadores Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa. São Paulo: Quilombhoje, 2017, p. 259-267.



Catita, 15 de janeiro de 2018, croniresenheta (1) dos contos de Mari Vieira: "Fia, a Mãe e a Avó"; "Ana Horizonte".