Hoje é um domingo como alguns
outros anos que todos nós já tivemos, mas eu e meus irmãos vivemos de modo mais
marcante. 13 de maio para nós é uma data muitas vezes tripla: dia da Abolição
da Escravatura no Brasil (1888), dia das mães (sempre que cai no segundo
domingo de maio) e aniversário da Tina, a tiavó que nos criou (nascida em 1925).
Três datas que hoje – algumas desde antes - são incômodas.
Da Abolição
Não sei o Sandro, mas a Fabiana e
eu tivemos, cada uma em seu momento, crises agudas com a escola e a maldita “comemoração”
do 13 de maio. Todo ano do primário (hoje Fundamental I), invariavelmente,
tínhamos de pintar um desenho mimeografado, sim, já passamos todos dos
quarenta, somos da época daquele álcool inebriante na sala de aula e raríssimas
folhas em branco para desenhar e pintar o que quiséssemos à mão livre. Na embriagada
folha, empoçada às vezes, bem mal feita, mas centralizada, a figura de um
escravo liberto. O corpo desnudo obrigatoriamente devia ser pintado de marrom,
pois o preto encobria os demais traços do desenho e as professoras diziam que “não
dá pra ver nada se pintar de preto”. Também não dava para pintar de “cor da
pele”... Pele das bonecas, das figurinhas, das crianças dos filmes, das pessoas
das novelas, das crianças fora da família. O farrapo de calça deveria ficar
branco, no máximo um amarelinho, marrom pintado com pouca pressão dos dedos ou
acinzentado, feito com pó do grafite do lápis de escrever circulado cuidadosamente
pela pontinha do dedo indicador, afinal, não tinha cinza na caixa de 12 cores
do lápis de cor. Tudo porque precisava aparentar sujeira e miséria, já que as
roupas eram feitas de sacos e eles, os escravos, viviam em péssimas condições. Não
tinha chãozinho, nenhuma graminha ou florzinha colorida sequer, um céu azul e
sol poderia ser até sugerido pelas cores, mas não estavam desenhados, então “você
não está pintando certo” (lembro de, pelo menos uma vez, ter feito a chuva). Não
tinha cenário ao fundo, no máximo a corrente partida, muitas vezes em plano
maior que o escravo, com a data e a nomeação, que eu contornava de canetinha vermelha,
que eu não emprestava para nenhum bruto calcador de ponta, descuidado com a
caneta alheia, a qual deveria durar o ano letivo todo. Vagamente lembro de ter
o nome ou o rosto da tal princesa salvadora no canto da folha. Quando comparava
a outras datas, outros desenhos, tudo isso incomodava bastante, mas nada nada
nada era mais irritante que o cabelo: a brilhante, batida e ofensiva ideia das
professoras era colar bombril no topo
da cabeça do escravo. Claro, cabelo de preto é duro feito palha de aço, nenhum
material melhor a representá-lo. Era só olhar para as minhas tranças, tocar nelas
que eu perceberia como a fibra era áspera, rebelde, tal o bombril. Não podia ser uma lãzinha preta não, professora? Eu sabia
fazer os rolinhos... Nós e alguns poucos amigos negros tínhamos de viver essa
maravilha todo santo 13 de maio! Poucos, pois embora tenha estudado na escola
pública a vida toda, num tempo em que ainda havia certa qualidade, poucos eram
os negros que a frequentavam e quanto mais eu avançava nos estudos, menos via
meus iguais “de cor”, como ainda éramos designados. Sempre desconfiei daquela
história que era contada nos livros, do quanto tinha de agradecer à tal
princesa, do quanto os escravos isso, os escravos aquilo. Os escravos. Os
negros, os pretos, é conceito ressignificado – fora do espaço doméstico – muito
muito tardio.
Hoje, 13 de maio de 2018, já lá vão
130 anos de Abolição. E nós pretos, nós
negros seguimos na luta ainda para sobreviver. Se não há avanços? Sim, muitos.
Mas quanto tempo e consciência também dos não-negros ainda são necessários para
deixarmos de ver retrocessos todo dia, nas escolas, nas ruas, nas conversas de
bar, nas artes, na mídia, nas notícias, nas universidades, no trabalho, nas
lojas, na política...? Quantos de nós ainda tentarão invisibilizar? Quantos de
nós tentarão ainda silenciar? A quantos forem, vamos mostrar e gritar que
estamos aqui, em pé, juntos. E seguindo.
Do Dia das Mães
Naquele tempo e ainda hoje em
muitas escolas se comemora o dia das mães, desde apenas com uma “lembrancinha”
feita pelo aluno, geralmente com uma pequena contribuição da família para o
material usado, até com uma festinha, dancinhas, musiquinhas, decoração e
presença das mães no recinto. Pois bem, eu e meus irmãos tivemos sempre de
explicar que não tínhamos mãe. Os olhos da professora e de alguns dos
coleguinhas se esbugalhavam, como se tivéssemos dito alguma blasfêmia. E como
ficar pior? Bastava dizer que ela morreu quando eu era bem pequena. Meu irmão
tinha só 21 dias de nascido. Aí as expressões se entristeciam e o inevitável “coitadinha”
vinha. Mas isso não surtia qualquer mudança no desenho mimeografado com a palavra
“mãe” ou “mãezinha” inscrita. Palavra que eu nunca disse. Tina sempre fez
questão de contar nossa história, de deixar claro que não era nossa mãe, que
era tia do nosso pai, a quem ajudou a criar e que cedo casou, mas cedíssimo
enviuvou. Para manter a família unida, reza a lenda, Tina “pegou os quatro de
volta” e terminou de criar todo mundo, somando na casa o salário de empregada
doméstica dela e o de metalúrgico do meu pai. E todo dia operando o milagre da
divisão, raras vezes o da multiplicação e sempre convivendo com o fantasma da
subtração. Cada um de nós teve de aprender a lidar com essa falta, com essa ausência
praticamente sem ter sido presença, da mãe Terezinha, cujas poucas histórias
eram contadas mais pela Tina que pelo pai ou talvez até mais pelo quadro na
parede, a nos lembrar sua cor, seu sorriso, seus cabelos, seus sonhos, sua
roupa anos 1970! As lembrancinhas da escola iam para a Tina, claro, mas eu
quase sempre fazia um bilhetinho à parte, em que podia escrever “Tina” bem bonito
e agradecer de forma mais eu que as trinta e poucas, quarenta lembrancinhas
iguais da escola.
Hoje, faz 19 anos que não tem
bilhetinho, nem presente, nem flores, nem almoço especial, nem mesmo um
telefonema para a Tina. Se eu estivesse na escola e fizessem a festinha, teria
de relatar agora duas mortes. Consola que em minhas preces e atos elas estão
presentes, às vezes mais uma que outra, mas gratidão igual às duas por
realmente darem a vida por mim e pelos meus irmãos. Nas preces e nos atos
também a defesa para que a escola seja realmente um espaço de acolhimento, não
de exclusão, que não “comemore” de forma tão impensada tantas datas, desconsiderando
as diversidades todas existentes, as histórias pessoais já suficientes para
quebrar o padrão, do que “é normal”, do “sempre foi assim”, de que o diferente
supera, “a gente é forte”. A custa de quê, de quanto?
Do
aniversário
Acho que essa era a única data que realmente
importava! Não tinha intervenção da escola, embora bastante impedimento
financeiro. Não me lembro de dar presente para Tina quando criança, possivelmente
porque era o pai que comprava e nós dávamos juntos. A memória da família é a
Fabiana, estou até ouvindo-a dizer “mas como você não lembra, irmã?”. Eu lembro
de adolescente, já trabalhando em escola infantil, de comprar um corte de tecido,
uma “fazenda” como se dizia, para eu fazer ou mandar fazer vestido para ela.
Era um presente que gostávamos de trocar. Ou eu tricotava uma touca ou cachecol
para ela. Mas o que não esqueço mesmo é de me ver escrevendo sempre para ela,
desde criança. “Que tanto você escrivinha aí, menina?” “Sabe que escrivinhar
não existe, né? É escrever. Nunca deixe de estudar”.
Hoje não tenho certeza se isso é
memória vivida ou criada, mas que a ouço dizendo, ouço! Mesmo jovem, quando “a
faculdade virou” minha cabeça! E há dezenove anos não tem presente, nem fazenda,
nem carta. Mas, relatados também pelo caçula, tem angústia, aperto no peito,
dor de barriga, insônia, vontade de chorar... Uma semana antes do dia 13 de
maio. Que passa, quando o escrivinhado fica pronto.
13 de maio
de 2018, da série “Tirem as vendas, senhores”.
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