domingo, 31 de dezembro de 2017

Dezembro

Todo dezembro a Tina me leva para uma igreja, seja para assistir a uma missa ou não, sem que eu me planeje: quando vejo, estou dentro do templo. Às vezes só para ficar lá um pouco, ajoelhar, rezar, sentar. Lembrar, chorar, agradecer, pedir. Olhar, chorar mais um pouco, me recompor. Fazer o sinal da cruz em genuflexão e sair.

Ela sabe que não vou sempre, às vezes quase nunca, embora reze praticamente todas as manhãs, menos naquelas em que estou atrasada. Rezo daquele meu jeito que as catequistas que tiveram a felicidade de serem minhas professoras adoram: em qualquer lugar, sem seguir os scripts das preces (embora eu saiba quase todas e tenha toda a liturgia da missa na ponta da língua) e sem linguagem solene. A maior heresia da preta pré-adolescente foi ter a petulância de dizer que se Ele está em todo lugar, por que não posso rezar pra Ele quando estou no banheiro? Com certeza isso chegou esbravejado aos ouvidos da Tina, mas não me lembro de nenhuma reprimenda, lembro antes de comprarmos velas – eu queria de todas as cores sempre, mais para admirar que para usar – e acendermos em algum canto no alto da parede de tijolo à vista ou do quintal, dependia da ocasião, mas quase sempre com um copo d’água do lado, um pires com papeizinhos, mel, açúcar, às vezes fitas coloridas... Vez ou outra uma imagem de um santo católico ou de um guia da Umbanda era também iluminada por aquela pequena chama. Invariavelmente, Tina rezava. Acredito que todos os dias. Serena, mas concentrada, firme. Ritual silencioso quase sempre, vez ou outra cantarolado com um ponto, um canto ou uma melodia qualquer que eu não distinguia, porém me acompanhava o dia todo. Dentro da minha cabeça.
Todo dezembro, a Tina me leva para uma igreja. Ela sabe que aquela menina tímida, receosa, medrosa até de brincar na rua, que preferia ficar enfiada nos livros, era bocuda quando o assunto era religião. São muitas as situações em que retrucava com alguém da igreja, uma lista quase interminável, mas centrada nos usos e costumes. De que adianta ouvir a homilia do padre e na saída da missa xingar a criança “de rua” que está na porta da igreja, às vezes só sentada, brincando? O que tem a ver a roupa que uso para ir à igreja? Foi Jesus que disse o que pode e o que não pode? Quem, como, quando entra na igreja? Tá escrito na bíblia onde? Não era diferente no Centro da madrinha Avelina lá no Itaim Paulista. Por que algumas pessoas fingem que estão incorporadas? Acham que a gente é besta mesmo? Ela não veio aqui pedir ajuda? Por que trata tão mal as pessoas daqui? Por que criança não pode ficar nessa gira mesmo? E mesmo quando silenciava na presença das pessoas, não fechava a boca em casa e lá ia a Tina explicar uma passagem da bíblia, o ritual de alguma entidade e a função da cambone. Quase sempre com paciência e outras tantas com o encerra-papo “você vai entender melhor quando crescer”.  
Todo dezembro a Tina me leva para uma igreja. Ela sabe que nunca gostei daquelas imagens, embora adore as histórias dos santos e santas, menos pela santidade em si, mais pela humanidade desses seres, pela curiosidade de quem diz que são santos e por que cargas d’água o são! As imagens doridas sempre me assombraram, aquele Jesus pregado, ensanguentado...eu ficava triste. E o “Ele morreu para nos salvar” me soava como Ele está lá por nossa culpa (minha?). Como ser feliz com Ele assim? Então eu preferia conversar com Ele de boa, na minha “língua”, sentado do meu lado na cama mais alta da treliche, balançando as perninhas no ar, ou tentando entender o que eu falava enquanto escovava os dentes com água esquentada na canequinha nos dias mais frios. Com as entidades era mais difícil, porque eu pouco entendia o que os caboclos falavam... Então eu preferia imaginar, mas no dia da gira tinha medo de algum deles me confrontar e brigar com os meus pensamentos.
Mas todo dezembro Tina me leva para uma igreja. Apesar de todas as minhas críticas infanto-eternas, sempre me sinto bem lá dentro. Nem sei se “bem” é o advérbio certo. Sempre choro, primeiro de horror pelas atrocidades que fizeram "em nome de Deus", descortinadas na escola, na literatura. Depois choro de dor pelas perdas, afinal, mesmo entendendo pela umbanda que há outro plano iluminado para as almas com quem um dia reencontraremos, aceitar que o corpo se vá e eu não mais escute sua voz é sempre muito difícil. Nem Ele nem Elas me explicaram isso, de maneira convincente. Só a Ciência (falência dos órgãos, complicação da cirurgia, doença incurável) ou a Razão-Acaso-Descaso (batida em alta velocidade, raio, deslizamento de terra). Difícil se conformar com o “esse é o caminho natural” ou o sarcástico mal gosto “para morrer basta estar vivo”. Quando o choro cessa, rememoro o ano e agradeço por tudo, até os momentos ruins, que me fizeram aprender alguma coisa e crescer, de algum modo, mesmo que eu ainda não saiba qual é. Em seguida listo todos os nomes que estiveram presentes nas minhas preces matinais, todos e todas que precisaram de ajuda com algum conflito ou crise familiar, financeira, amorosa, de trabalho, de saúde, existencial. Aproveito e peço pela saúde de nossos médicos e psicólogos, que precisam de lucidez pra cuidar da gente. E peço por todos e todas poetas, todas as escritoras e os escritores, que pelas palavras (re)constroem esses nossos mundos reais e imaginários. Por fim volto a chorar de plenitude, que não sei explicar de onde nem por quê. Faço o sinal da cruz em genuflexão e saio. Todo dezembro. Com a Tina.

31 de Dezembro de 2017, da série “Ciclos”.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Voz

Não sei se a chuva, o cansaço ou o frio
Não há data comemorativa ou pesarosa
Não sei se a reflexão do cotidiano, a perplexidade com a política, a instabilidade da vida
Não sei se o curso que queria fazer, se a crônica que estava sendo gerada na cabeça, se as provas já em fila a corrigir, se a notícia da exposição comemorativa e gratuita do Museu Afro-Brasil, se a capulana nova - na combinação marrom e amarelo que ela amava – que vai virar uma saia quando eu tiver tempo pra costurar

Só sei que hoje eu ouvi a voz da Tina.

Não essa voz que a gente constrói no imaginário
Para fixar na memória aquele ente querido
Não aquela voz que a gente cria ao ver as fotos antigas
Não as palavras dela que ressoam em mim e espalho por aí para mantê-la como viva
Não o ensinamento dela que reconheço em mim ao estar com o Cauã ou a Rayane, a continuação da nossa família pelos ventres fraternos

Foi a voz da Tina que ouvi hoje.
Nítida.
Por nanomilésimos de segundos.
No meu ouvido.
Dentro da minha cabeça.

Eu queria saber a razão.
Para conseguir fazer isso de novo.
Será que fui eu que fiz?
Queria esse poder.
Precisava.

Seria o mantra (ponto?) do feminismo negro?
“Não estou sozinha”.
“Trago comigo todas as minhas ancestrais.”
A Tina foi a preta velha, a sábia matriarca marcada em mim.

O que falou pra mim?
Sua voz durou tão pouco hoje, que não consegui gravar as palavras, Tina.
Sabe quando eu acordava e não conseguia contar o sonho, ele me escapava, mas a sensação dele ficava?
Lembra, Tina? Assim foi sua voz agora. Depois de tantos anos...
E foi tão inesperado
Não consegui segurar na minha cabeça
Não consegui ouvir de novo.

Não consegui.

Eu sempre falo com você, desculpe, com a senhora, mas é um monólogo.
No máximo um diálogo imaginado.
Mas hoje foi sua voz mesmo, sabe, Tina?

Nítida.
Do meu lado.
Com seu sorriso.

Sua voz, Tina.

E meu choro escondido
Porque estou trabalhando, Tina.

Tina com o Sandro no colo, eu me escorando e a Fabiana na frente. Como eu me lembro desse vestido...




quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Jean Pierre (Tríptico felino 1)



Hoje é dia de sua partida
Um hoje que é para sempre

Uma dor que não será diminuída com seus afagos, ronrons ou miados
Nem com enrondilhamentos no meu colo
Nem com suas patinhas fedidinhas na minha cara
Ou amassando pãozinho na minha barriga 

Guardo aqui dentro 14 anos de ontens

Plenos de saltos espetaculares: 
O céu - ou o alto da geladeira - é o limite

De tocaias calculadas ou improvisadas:
Atrás dos vasos, do sofá, embaixo da mesa, não sei se assustando ou tomando susto

De frustrantes preferências felinas: abandono de todo e qualquer brinquedo caro por uma mera bolinha de papel chutada pela casa toda

De olhos verdes pairados sobre mim por longo tempo:
O que pensa? Só faltou falar...a minha língua! 

De invariáveis escapadas pro elevador sempre que a porta de casa era aberta:
Eu gosto mesmo é do capacho do vizinho!

De quase-voos impossíveis de serem fotografados: 
Pobres pequenos insetos desatentos em território inimigo!

De sutis avisos de hora de parar:
Deitar sobre o teclado do computador, sobre o livro sendo lido, sobre a prova sendo corrigida.

De tropeços quase desastres por minha visão não felina:
Sempre entre meus pés, a quase todo passo pelos 50m2 de nosso apê.

14 anos de ontens
Milhões de cenas na memória 
Bilhões de alegrias no coração 
Zilhões de minutos juntos, brincando, dormindo (mais dormindo uma no calor do outro?!)
Centenas de remédios e visitas da veterinária  (gata em pele de ser humano tranquilizando nossos corações)
Dezenas de desesperos no último ano (quase dois)
Uma incômoda espera
Uma só dor.

Saudade  eterna
Experiência incrível 
Amor imenso
...
"Quem mandou deixar essa mochila aqui?"

Post poesis 1: Hoje é 21 de junho, você respira mal, Jean, se locomove com dificuldade, me olha perdido, mas fica por perto. Eu te amo, e te digo, suas orelhas confirmam que você me ouve... você comeu, baba mais que o normal, fica dorme-não-dorme. Eu te amo, e te digo. Choro por dentro. Me despeço. Eu te amo. E te digo...


Post poesis 2: Hoje é 04 de outubro e, me conhecendo como mais ninguém, você não iria embora no inverno, sabe que me entristece essa época. Foi guerreiro, reergueu-se, tal Fênix, como sempre lembra a tia Lucymara, e nos deu ainda mais alegrias e inspirou ainda mais cuidados. Escolheu o dia de hoje, por ser primavera, minha estação favorita – sempre brigávamos com as flores na mesa que você insistia em mexer, “comer”, derrubar! -, e por ser dia de São Francisco de Assis. Quem mais poderia recebê-lo tão bem, senhor Jean Pierre? Gratidão eterna por nossa jornada de aventuras, pelo relacionamento de amor mais longo que tive(mos). Eu te amo. E te digo... 
Últimos dias, companheiro de sempre

No auge, vívido, esperto!

terça-feira, 19 de setembro de 2017

(In)Justiça para quem?

Olha ela, ultrapassou a marca de 600 curtidas em sua página do Facebook sobre seu blog! Clap clap clap! Mais pessoas estão lendo o que ela escreve. Óh! De que adianta essa “conquista”, se dia após dia cada notícia é um tapa na cara, um soco no estômago, um chute nas costas? Dia após dia um fôlego aos “-ismos” que ela ataca, um sufocamento aos “-ismos” e “-dades” que defende? De que adiantam suas aulas, querida agora estrela Jeni Turazza, para discernir o relato da ficção, se tudo, absolutamente tudo, soa absurdez?
Há pouco mais de um ano, a escritora se encontra em um estado de transformação profunda naquilo que sente como ser escrivinhadora; no que a inspira a escrivinhar, seja o amor ou a dor, o particular ou o coletivo; naquilo de que escolhe participar, sarau, slam, oficina de escrita, de criação. De que adianta tal mergulho, se “Após protesto, mostra com temática LGBT em Porto Alegre é cancelada”?  Se “Peça com transexual em papel de Jesus é cancelada após decisão judicial”? Se “Flip 2017 ousa e acerta ao apostar em maior diversidade”? Diversidade não é aposta, é (r)existência, e chega de chamar de ousadia o que é urgência. A arte serve para quê? E a justiça está no fosso.
Nos últimos anos, a professora vem aprimorando seus estudos acadêmicos, repensando sua prática de sala de aula, tarefa constante de seus 25 anos de formada no antigo magistério, aprimorando as pesquisas na área da educação, da linguagem e afins. Conversa sempre com seus colegas recém-chegados à profissão, trocando experiências, perspectivas, esperanças. De que adianta, se “Contêiner vira sala de aula na URFJ, melhor universidade do país”? Se “Rocinha em guerra tem operação e mais de 3000 alunos sem aula; ao menos 4 suspeitos morreram”? Se “Professora é agredida por aluno em sala de aula”? Se “USP abre concurso para professores temporários com salário de R$25 por hora”? A educação serve para quê? E a justiça segue no esgoto.
Há mais de quatro décadas ela nasceu negra e para ter seus direitos garantidos, bem como de seus irmãos e irmãs, luta todos os dias, de todas as formas que tem e consegue e forja, desde sua existência, que deveria ser simples, até suas palavras faladas e escritas, suas ações e mais recentemente sua prática de dança afro, nada de afrofitness, Regina Santos, mas resgate da ancestralidade de seu povo, (re)descoberta de sua corporeidade, respeito à religiosidade de todos, bem como ao ateísmo. De que adianta, se “Vítima de racismo, senegalês é agredido no centro de Caxias do Sul”? Se “Jovem negro denuncia racismo sofrido em supermercado no Santa Tereza”? Se “Atos em Charlottesville mostram a cara do ódio racial americano”? Se “Advogado oferece banana a funcionário de empresa aérea e é preso em Belo Horizonte”? Se “Criminosos obrigam mãe de santo a destruir próprio terreiro em Nova Iguaçu”? Se “De novo o debate sobre racismo no futebol vira papo de rivalidade clubista”? Mas falar sobre racismo é mimimi, é vitimismo, porque a miscigenação é uma coisa linda desse Brasil brasileiro. Para que serve o movimento negro? E a justiça permanece na vala.
Sempre entendeu seu papel de mulher na sociedade, mulher negra e pobre, como a lutadora incessante. (De novo, Catita? Não cansa não de ficar brigando?) Pode parecer de hoje que fala em feminismo, mais uma modinha, mas é feminista desde o espasmo causado na reunião de família, quando no meio das senhorinhas todas falou, da altura de seus onze-doze anos, da casa que teria e da vida que queria, autônoma, independente de marido. Nunca esquece o amarelo da página da revista que lhe inspirou o desejo, o zumbido das senhoras a enrouquecer seus argumentos, a perplexidade ante a tia-avó, sempre solteira e independente, mas que “não lhe servia de exemplo”. Compartilha hoje sua experiência com adolescentes do coletivo feminista do colégio em que leciona, de maioria não negra, de maioria não pobre (o dinheiro não é um problema, mas o que se faz com e por ele), meninas que amam suas mães, avós, tias, professoras, mas se querem mulheres mais fortes; aprendem com Simone de Beauvoir, mas vão além, e aprendem também com Laudelina de Campos Melo; trouxeram à escola para falar com todas e todos sobre feminismo a Djamila Ribeiro, uma outra preta e acadêmica, adjetivos raramente juntos numa mulher só; têm consciência de seus privilégios, querem que todos os lugares de fala sejam ocupados. De que adianta tanta consciência, se “Estudante sofre estupro coletivo em Peruíbe”? Se em “BBB e A Fazenda: a mídia enaltece agressores de mulheres”? Se “Aeromoças russas têm cortes nos salários por serem gordas demais”? Se “Taxa de assassinato de mulheres negras cresce 22% em 10 anos”? Se “Assédio é problema mais grave que superlotação e demora de ônibus”? Se “Pai espanca filha que perdeu virgindade e é absolvido”? Para que servem os feminismos? E a justiça continua no buraco.   
Não cresceu ela num ambiente esclarecido, ao contrário, sexo sempre foi um tabu, sexualidades, no plural então... safadezas. Mas saiu desse obscurantismo, aleluia!, quando compreendeu a sua sexualidade e vem dia a dia compreendendo as outras tantas, as quais defende, pelas quais também luta. Atua junto a seus (ex)alunos e colegas professores para que a diversidade seja respeitada, além do uso de um filtro temporário de arco-íris na rede social. Discute com sua amada - de forma saudável, embora dorida –, após o santo café da manhã dominical, os embates entre militância e medo, entre visibilidade e exposição; procuram achar juntas um caminho de atendimento às demandas de ambas, de acolhimento às inseguranças e decisões de cada uma, no tempo de cada uma. De que adianta tanto esclarecimento, tanto amor, se “Os desafios de uma vereadora jovem, mulher e bissexual na Câmara Municipal de São Paulo” vão de olhares tortos a ameaças, sofridos lá dentro da casa da lei? Se “Funcionária transexual é demitida após denunciar agressão e discriminação no DF”? Se “Homem transexual é encontrado morto após ter casa invadida”? Se “Justiça concede liminar que permite tratar homossexualidade como doença”? Se “Visibilidade lésbica ainda é desafio para garantia de acesso a direitos”? E a justiça queda-se na cova.
Como escolher um só assunto para escrever a crônica, Antonio Prata? Se tudo isso e mais me afeta e atinge sem cessar, sem direito a trégua? E esse textão, que vão acusar de panfleto, de manifesto sem quase nada além de grito? Quase nada além de um amontoado de manchetes de menos de cinco meses entre si, colhidas a esmo de um amontoado muito maior que nem chegou a ser noticiado? Chamo de crônica muito menos pelo aspecto literário que pelo estado revelado e constante de mim e do mundo. De que adianta acordar todos os dias, saber ler, conseguir ouvir, locomover-me para o trabalho, tentar vivenciar as culturas, lutar, gritar, amar, se nem capacidade de terminar esse texto sem evocar os perturbadores versos de Adelaide Ivánova eu tenho?
“De que adiantaria meu silêncio?

De quem estaria meu silêncio a serviço?”
Flip 2017 - Fruto estranho: Adelaide Ivánova

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Primeira impressão

Sou prova viva de que, se a primeira impressão fica, ela pode se transformar ao longo do tempo. E ainda bem, porque essa constatação pode aliviar-me da imensa grosseria que imprimo às pessoas no primeiro contato, pessoas essas que – oxalá – permanecem na minha vida, de forma contínua ou não. Vamos aos casos comprobatórios de minha teoria. São três, em ordem aleatória.
Caso 1: Eneida, parceira querida e competentíssima de trabalho, sempre (re)conta aos risos e com certo ar reprovador que, no dia de sua entrevista com a coordenadora de Português do colégio em que estamos até hoje, eu entrei na sala e ela, toda feliz por ver um rosto conhecido, empolgada, disse que me conhecia e eu respondi com um sério, nada empolgado e duro, “da USP”. Não foi por mal, Nê, querida, era minha tensão por resolver as coisas e a falta, naquele momento, de intimidade entre nós. Daí meu distanciamento. Só posso insistir no eterno pedido de desculpas. E ficar feliz de termos um laço tão lindo e verdadeiro, mesmo não sendo amigas de estar uma na casa da outra ou de sair ou de ligar pra jogar conversa fora. Nosso lugar de amizade é outro e tão lindo quanto outros.

Caso 2: Vinícius, ex-aluno, ex-estagiário, ex-professor de equipe por mim coordenada, atual colega de trabalho e grande amigo-confidente, ama contar especialmente para meus alunos atuais - e também em tom um tanto quanto magoado -  o quanto teve medo de mim no primeiro dia de aula dele, adolescente, em que eu exemplificava para que servia o encosto de uma cadeira e comentava sobre esse esquecimento das criaturinhas que se sentavam na fileira da parede, que desprezavam invariavelmente parte tão importante de tal móvel secular. O Vini, coitado, não só era um dos que se sentavam na tal fileira, como também estava desprezando o encosto, e ainda demorou minutos e perceber que eu me dirigia a ele. Não foi por mal, Vini, querido, era (é?) meu jeito às vezes irônico, às vezes sério, mas sempre, ah... pedagógico, de ensinar alguma coisa. Daí minha rudeza. Só posso insistir no eterno pedido de desculpas. E ficar feliz de termos um laço tão lindo e verdadeiro, a ponto de, mesmo brigando contigo, rir à beça de você conseguir se perder quando quer fazer a gentileza de me deixar em casa, caminho já feito inúmeras vezes! (Fora as outras peripécias que não posso contar. Ainda!)

Caso 3: Denise. Denise foi o nome que li na lista afixada no mural da FFLCH no início de 1994. Lista de resultado da “declaração de interesse por vaga”. A única vaga que havia sobrado para Letras, após a primeira chamada da Fuvest. Eu era a quarta colocada. Com certeza um dos dois primeiros colocados conseguiria (não lembro mais os nomes, mas eram garotos). Mas no dia marcado para verificar a lista, estava lá o nome da Denise. Denise era a terceira da lista. Naquele dia, voltando para casa, resolvi descer do ônibus em Santana e me matriculei no cursinho. O magistério na escola estadual, querida formação secundarista, não havia me dado base para as exatas e parte de bio. A mensalidade era o salário que eu tinha como professora da educação infantil. O pai serralheiro prometera – e cumprira a duras penas – o dinheirinho que eu precisasse pra condução (e muito café e amendoim para estudar horas e horas a fio, com a outra amiga, dupla inseparável de pretas únicas metidas ali). Não comprei uma agulha naquele ano. E não é força de expressão: eu já costurava e, com muito mais tempo e energia que hoje, fazia minhas roupas. A Tina, ainda boa de saúde, vez por outra me surpreendia com uma fazenda de viscose ou popeline. Foi o ano da URV. Não vou nem explicar isso aqui... (santo Google que te ajude, irmão!).    Mas ao fim daquele ano, consegui minha vaga na USP, com pontuação que, diziam alguns professores, poderia ser para o que eu quisesse (eles não entendiam que eu queria Letras, muito menos Português... Ouvi até o desprezível clássico “Que desperdício”...). Não tenho orgulho do meu esforço, conjunto ao de minha família, para que essa conquista se fizesse em minha vida. Chorei antes pelos outros tantos amigos e familiares que nunca nunca nunca tiveram a chance que tive, nem mesmo de sonhar com isso.
Mas voltemos a Denise. Em 1995, por essas ironias do destino, fizemos alguma disciplina juntas e então descobrimos essa nossa história. E, claro, sempre lhe repeti que ela havia sido quem me tirou a vaga. Não foi por mal, Dê, querida, era imaturidade. Daí minha bestice. Só posso insistir no eterno pedido de desculpas. E ficar feliz por, mais de 20 anos depois, você ter me reconhecido num auditório de um importante congresso de nossa área, ter me chamado, trocado telefone, almoçado, abraçado, conversado, assistido à minha apresentação e marcado de não mais nos perdermos (até porque, mais ironias do destino, moramos no mesmo bairro!). Faltou dizer, Dê, que lá nos idos de 90, depois de conhecê-la realmente, sempre admirei sua inteligência. E isso se renovou no nosso mais recente encontro.


A cronista sabe o precedente que abre com tais confissões. E de antemão insiste no eterno pedido de desculpas por todas as suas caras de poucos amigos, coração de pedra, palavras ásperas (sinceras?!) que atirou nos seus primeiros encontros. E fica feliz de você se dar ao trabalho de lembrar e comentar minha falta de polidez, por que isso significa que primeiro você leu essa crônica. Então antes ainda me acompanha na vida física ou virtual para ter chegado a lê-la. Então você é daqueles que permanecem na minha vida. Então a primeira impressão fica, mas se transforma. Ainda bem!

domingo, 14 de maio de 2017

Construção da alma

                               
Terezinha, a mãe que me gerou, mas partiu em 1977 e Tina, a tiavó que me criou, mas partiu em 1999
                            
A Tina

A mão.
A mãe.
A mão da mãe:
Punição
Salvação
Bênção.

Amor de mãe:
Gestação
Prisão
Doação
Separação
Compreensão.

A mão de minhas três mães.
As três em fusão.
Unidade Trina de Consagração.
Filial adoração.
amor-ador-ação:
Coragem.

1996, para um trabalho de Literatura Brasileira do Augusto Massi, na FFLCH-USP. Eu ainda sentava com a Tina na preparação das comidas e conversávamos nos pés da cama.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Pelos sete palmos

Não faço poema
Porque um dia me disseram,
Me medindo de cima a baixo,
Que esse tipo de coisa não era para mim.
Quem era eu?

Não escrevo poema
Porque um dia me revelaram
Que tudo o de mais belo que eu podê-lo-ia pensar escrever já o fora,
Assim, com essa pedante mesóclise
E esse estranho pretérito mais que perfeito,
Ambos indecifráveis para aquela garota de doze anos.
Quem era eu?

Não crio poema
Porque um dia me riram feroz
Que poeta mulher é poeta menor, quicá nem poeta.
Quantas eu conhecia?
A ingenuidade confundia meu raciocínio?
Não me enxergava?
As listas e nomes sempre foram de autores homens.
Quem era eu?

Não formulo poema
Porque um dia me segredaram
Que até eu conseguir falar algo de interessante
Que não fosse minha vidinha de mulher, preta, pobre
E meus pequenos dramas,
Talvez eu já estivesse morta.
Que experiências eu teria?
Que grandes feitos eu realizaria?
Quem era eu?

Não invento poema
Porque um dia me desafiaram
A que se eu conseguisse botar comida na mesa
Já deveria levantar as mãos pro céu
E agradecer.
Que eu me conformasse em ter um trabalho,
Uma vida digna
E parasse com devaneios.
Quem era eu?

Não componho poema
Porque um dia tentaram me convencer
De que literatura só é assim chamada
Se não for compreendida
Se não for acessível à massa
Se estiver nos programas da academia
Se estiver nas grandes editoras.
O resto não era literatura.
O resto era gritaria ou choradeira.
O resto era só manifesto.
Quem era eu?

Não gero poema
Porque um dia me sentenciaram
A que fecundo em mim fosse apenas meu ventre
Minha função romanticamente mais bela
E talvez única
A ser reconhecida como produtiva.
Com meu útero doente de mim extirpado,
Coitada! Desnecessária. Inútil.
Quem era eu?

O primeiro poema brotou em mim
Rompendo cada um dos sete palmos
De não.
E eu fui e sou
Quem eu quero ser.

quinta-feira, 13 de abril de 2017

A Inveja e o Alheio

     Outro dia desses, a Inveja encontrou o Alheio. Nada diferente do comum: desde pequenina a Inveja busca o Alheio em todas as suas formas e só fica feliz quando dele se apropria. Mas nesse dia especialmente, o Alheio estava revoltado:
     - Escute aqui, Inveja: estou cansado de você. Lembra quando eu era só um brinquedinho inocente no berço de seu irmão?
     - Claro! – os olhos de Inveja brilharam.
     - E quando eu era aquela caixa de lápis de cor de seu coleguinha de pré-escola?
     - Linda! – as sobrancelhas de Inveja arquearam-se.
     - E quando a professora falou que eu era a melhor nota da turma toda?
     - Sim. – o nariz de Inveja entortou-se.
     - E quando fui a roupa mais original daquela festa incrível, de que falaram por mais de um mês?
     - É. – sorriu Inveja, de lábios selados.
     - E quando era o grande amor de sua melhor amiga? Ou as flores mais belas com cartão misterioso chegando assim de repente no meio da roda?
     - Verdade... – engasgou-se Inveja.
     - E quando eu fui a merecida promoção daquele funcionário que você admirava, dizendo-se “branca”?
     - Sei... – os ombros de Inveja enrijeceram-se.
     - E quando fui a viagem mais divertida de seus primos?
     - Lembro. – o peito de Inveja se comprimiu.
     - E quando fui a reforma da casa de sua vizinha?
     - Que reforma! – o ventre de Inveja se contorceu.
     - E quando fui o prêmio revelação daquela artista maravilhosa?
     - Foi... – Inveja roeu uma de suas unhas.
     - E quando eu era apenas uma selfie bobíssima de um novo corte de cabelo de sua amiga ou do prato de comida de seu tio e tinha um monte de curtidas?
     - Eita! -  os punhos de Inveja cerraram-se.
     - Então...
     Mas antes que Alheio, magoado por anos, enfim concluísse todo o seu raciocínio, Inveja, com os olhos fixos no Alheio, abriu bem os braços, enlaçou-o, fagocitando-o.


Moral da história: A Inveja só se alimenta do Alheio se Você (“que não tinha entrado na história”) deixá-lo de bobeira por aí, repisando suas dores. 

quinta-feira, 6 de abril de 2017

O futuro do país?

Há um tempo eu sou surpreendida pelo meu sobrinho e suas pesquisas e trabalhos de escola: a família, o meio ambiente, a cultura indígena, as comunidades quilombolas, as artes, as profissões etc. Geralmente, ele me chama pelo WhatsApp da mãe, por vídeo e andando pela casa, e – ensaiadinho - faz a abordagem-pergunta-anota-agradece-desliga. Às vezes ainda confirma a grafia ou o significado de uma ou outra palavra, em outras conclui que “está muito fácil”, que ele é “muito inteligente” ou que a descoberta é “inacreditável”.
“Aqueles são búfalos. Eles são mamíferos.” “Tia, não é verdade que o sol é uma estrela?” “Todas as aves têm asas, mas nem todas voam, né, tia? Você é professora de português, mas sabe essas coisas também.” Eram essas as conversas com os primos, no passeio de férias, em meio às discussões sobre a melhor forma de jogar certo videogame, o desenho animado ou o youtuber preferido, antes ou depois de correrem para chegar primeiro a um brinquedo ou ponto qualquer de uma descidona para desespero da tia. É encantador ver como eles crescem na escola, o tanto que aprendem.
E o que podem ser depois da escola? Graças ao Facebook, tenho notícias de meus ex-alunos e alunas que se formam médicos, engenheiros, advogados, dentistas, arquitetos, jornalistas, administradores, psicólogos, artistas plásticos, cineastas, atores... Alguns, poucos, professores. Uma boa leva estudou ou agora mora fora do país. Muitos festejam ingresso e conclusão de mestrado, doutorado. Um bom tanto já aparece casando, tendo filhos. Alguns desistem de suas escolhas iniciais e começam outra carreira agora, do zero, prestando vestibular novamente. Na época da escola, alguns eram plenamente conscientes dos privilégios de que desfruta(va)m, muitos aprenderam no processo, mas infelizmente uns tantos talvez ainda não entendam isso. Invariavelmente, porém, todos têm um futuro.
     A Maria Eduarda não.  
Se Maria Eduarda aprenderia muito mais e faria “jogos de quem sabe sabe” com a família em seus passeios? Se Maria Eduarda se destacaria entre os estudantes da escola pública do Rio e cursaria uma faculdade renomada? Se Maria Eduarda teria um emprego simples e comum ou notável e extraordinário? Se Maria Eduarda construiria família? Se Maria Eduarda descobriria um talento e se tornaria famosa? Se Maria Eduarda seria um modelo de mulher forte, independente para tantas outras garotas de seu convívio? Se Maria Eduarda compartilharia em seu Facebook artigos de empoderamento feminista negro? Se Maria Eduarda seria conhecida por desenvolver projetos em sua comunidade e faria a diferença nesse mundo? Eu não sei. Você não sabe. A família dela não sabe. Ninguém sabe e nunca vai saber. Maria Eduarda poderia ser atleta. Parece que tinha ganhado uma bolsa. Parece que era boa no que fazia. Morreu no final da aula de Educação Física. Parece que indo beber água. Morreu de uniforme da escola. Morreu dentro da escola.
"Penhor", de Ceumar e Gildes Bezerra: "a vida rubra/escorre"
Como as crianças são o futuro do país – ouço isso desde o século passado –, se nem presente muitas delas têm? E outras tantas que ficam presas nos dados estatísticos da violência doméstica, da pobreza, das drogas, das ruas alheias de nossas capitais, das balas perdidas de mocinho e bandido? Quatro. Quatro balas perdidas, paradoxalmente encontrando o corpo, a alma, o futuro de uma única criança. 13 anos. Uma menina, pobre e negra. Quatro balas perdidas no desespero da família, na indignação de quem defende os direitos humanos (não, pasmem, não são todos os humanos que defendem tais direitos), na perplexidade do ser que ainda insiste em ver bondade no semelhante, afinal não pode ser o único a perder o sono, a sentir a garganta apertar, o peito sangrar a cada notícia dessa, que não consegue achar que isso seja normal, comum, “faz parte” ou “é a vida”. Que ainda se deslumbra com a vida. Que morre junto de cada ser subtraído desse mundo por injustiça. Que se reergue todos os dias para continuar lutando, não apesar de, mas por causa de.
     Eu não fui professora da Maria Eduarda. Eu não sou tia da Maria Eduarda. Eu não participei de suas brincadeiras, não ouvi suas histórias, suas dúvidas, seus sonhos. Mas eu me recuso a tirar seu nome de minha lista de presença. Do meu presente.

Coisas e pessoas


Me perguntam
Por que uso coisas
Dadas por amores passados.

Uai! E as coisas têm culpa
Das tolices humanas?

E as coisas não guardam antes
As boas sensações dos momentos
Em que a mim chegaram?

E por que agora,
Que os amores se foram,
Elas devem ser destruídas?
Por que simbolizariam tristeza?

São as gentes
Que fazem a esparrela.

As coisas só se quedam
Nos observam
E suplicam nosso olhar
Vazio de mágoa.

Não têm culpa as coisas.

São as gentes,
Que com suas pernas
Vêm e vão
Com suas bocas
Adoçam e vociferam
Com suas mãos
Afagam e agridem.

As coisas são
Apenas coisas.

E se reciclam.
Mais nobres que as gentes.