quinta-feira, 6 de abril de 2017

O futuro do país?

Há um tempo eu sou surpreendida pelo meu sobrinho e suas pesquisas e trabalhos de escola: a família, o meio ambiente, a cultura indígena, as comunidades quilombolas, as artes, as profissões etc. Geralmente, ele me chama pelo WhatsApp da mãe, por vídeo e andando pela casa, e – ensaiadinho - faz a abordagem-pergunta-anota-agradece-desliga. Às vezes ainda confirma a grafia ou o significado de uma ou outra palavra, em outras conclui que “está muito fácil”, que ele é “muito inteligente” ou que a descoberta é “inacreditável”.
“Aqueles são búfalos. Eles são mamíferos.” “Tia, não é verdade que o sol é uma estrela?” “Todas as aves têm asas, mas nem todas voam, né, tia? Você é professora de português, mas sabe essas coisas também.” Eram essas as conversas com os primos, no passeio de férias, em meio às discussões sobre a melhor forma de jogar certo videogame, o desenho animado ou o youtuber preferido, antes ou depois de correrem para chegar primeiro a um brinquedo ou ponto qualquer de uma descidona para desespero da tia. É encantador ver como eles crescem na escola, o tanto que aprendem.
E o que podem ser depois da escola? Graças ao Facebook, tenho notícias de meus ex-alunos e alunas que se formam médicos, engenheiros, advogados, dentistas, arquitetos, jornalistas, administradores, psicólogos, artistas plásticos, cineastas, atores... Alguns, poucos, professores. Uma boa leva estudou ou agora mora fora do país. Muitos festejam ingresso e conclusão de mestrado, doutorado. Um bom tanto já aparece casando, tendo filhos. Alguns desistem de suas escolhas iniciais e começam outra carreira agora, do zero, prestando vestibular novamente. Na época da escola, alguns eram plenamente conscientes dos privilégios de que desfruta(va)m, muitos aprenderam no processo, mas infelizmente uns tantos talvez ainda não entendam isso. Invariavelmente, porém, todos têm um futuro.
     A Maria Eduarda não.  
Se Maria Eduarda aprenderia muito mais e faria “jogos de quem sabe sabe” com a família em seus passeios? Se Maria Eduarda se destacaria entre os estudantes da escola pública do Rio e cursaria uma faculdade renomada? Se Maria Eduarda teria um emprego simples e comum ou notável e extraordinário? Se Maria Eduarda construiria família? Se Maria Eduarda descobriria um talento e se tornaria famosa? Se Maria Eduarda seria um modelo de mulher forte, independente para tantas outras garotas de seu convívio? Se Maria Eduarda compartilharia em seu Facebook artigos de empoderamento feminista negro? Se Maria Eduarda seria conhecida por desenvolver projetos em sua comunidade e faria a diferença nesse mundo? Eu não sei. Você não sabe. A família dela não sabe. Ninguém sabe e nunca vai saber. Maria Eduarda poderia ser atleta. Parece que tinha ganhado uma bolsa. Parece que era boa no que fazia. Morreu no final da aula de Educação Física. Parece que indo beber água. Morreu de uniforme da escola. Morreu dentro da escola.
"Penhor", de Ceumar e Gildes Bezerra: "a vida rubra/escorre"
Como as crianças são o futuro do país – ouço isso desde o século passado –, se nem presente muitas delas têm? E outras tantas que ficam presas nos dados estatísticos da violência doméstica, da pobreza, das drogas, das ruas alheias de nossas capitais, das balas perdidas de mocinho e bandido? Quatro. Quatro balas perdidas, paradoxalmente encontrando o corpo, a alma, o futuro de uma única criança. 13 anos. Uma menina, pobre e negra. Quatro balas perdidas no desespero da família, na indignação de quem defende os direitos humanos (não, pasmem, não são todos os humanos que defendem tais direitos), na perplexidade do ser que ainda insiste em ver bondade no semelhante, afinal não pode ser o único a perder o sono, a sentir a garganta apertar, o peito sangrar a cada notícia dessa, que não consegue achar que isso seja normal, comum, “faz parte” ou “é a vida”. Que ainda se deslumbra com a vida. Que morre junto de cada ser subtraído desse mundo por injustiça. Que se reergue todos os dias para continuar lutando, não apesar de, mas por causa de.
     Eu não fui professora da Maria Eduarda. Eu não sou tia da Maria Eduarda. Eu não participei de suas brincadeiras, não ouvi suas histórias, suas dúvidas, seus sonhos. Mas eu me recuso a tirar seu nome de minha lista de presença. Do meu presente.

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