terça-feira, 19 de setembro de 2017

(In)Justiça para quem?

Olha ela, ultrapassou a marca de 600 curtidas em sua página do Facebook sobre seu blog! Clap clap clap! Mais pessoas estão lendo o que ela escreve. Óh! De que adianta essa “conquista”, se dia após dia cada notícia é um tapa na cara, um soco no estômago, um chute nas costas? Dia após dia um fôlego aos “-ismos” que ela ataca, um sufocamento aos “-ismos” e “-dades” que defende? De que adiantam suas aulas, querida agora estrela Jeni Turazza, para discernir o relato da ficção, se tudo, absolutamente tudo, soa absurdez?
Há pouco mais de um ano, a escritora se encontra em um estado de transformação profunda naquilo que sente como ser escrivinhadora; no que a inspira a escrivinhar, seja o amor ou a dor, o particular ou o coletivo; naquilo de que escolhe participar, sarau, slam, oficina de escrita, de criação. De que adianta tal mergulho, se “Após protesto, mostra com temática LGBT em Porto Alegre é cancelada”?  Se “Peça com transexual em papel de Jesus é cancelada após decisão judicial”? Se “Flip 2017 ousa e acerta ao apostar em maior diversidade”? Diversidade não é aposta, é (r)existência, e chega de chamar de ousadia o que é urgência. A arte serve para quê? E a justiça está no fosso.
Nos últimos anos, a professora vem aprimorando seus estudos acadêmicos, repensando sua prática de sala de aula, tarefa constante de seus 25 anos de formada no antigo magistério, aprimorando as pesquisas na área da educação, da linguagem e afins. Conversa sempre com seus colegas recém-chegados à profissão, trocando experiências, perspectivas, esperanças. De que adianta, se “Contêiner vira sala de aula na URFJ, melhor universidade do país”? Se “Rocinha em guerra tem operação e mais de 3000 alunos sem aula; ao menos 4 suspeitos morreram”? Se “Professora é agredida por aluno em sala de aula”? Se “USP abre concurso para professores temporários com salário de R$25 por hora”? A educação serve para quê? E a justiça segue no esgoto.
Há mais de quatro décadas ela nasceu negra e para ter seus direitos garantidos, bem como de seus irmãos e irmãs, luta todos os dias, de todas as formas que tem e consegue e forja, desde sua existência, que deveria ser simples, até suas palavras faladas e escritas, suas ações e mais recentemente sua prática de dança afro, nada de afrofitness, Regina Santos, mas resgate da ancestralidade de seu povo, (re)descoberta de sua corporeidade, respeito à religiosidade de todos, bem como ao ateísmo. De que adianta, se “Vítima de racismo, senegalês é agredido no centro de Caxias do Sul”? Se “Jovem negro denuncia racismo sofrido em supermercado no Santa Tereza”? Se “Atos em Charlottesville mostram a cara do ódio racial americano”? Se “Advogado oferece banana a funcionário de empresa aérea e é preso em Belo Horizonte”? Se “Criminosos obrigam mãe de santo a destruir próprio terreiro em Nova Iguaçu”? Se “De novo o debate sobre racismo no futebol vira papo de rivalidade clubista”? Mas falar sobre racismo é mimimi, é vitimismo, porque a miscigenação é uma coisa linda desse Brasil brasileiro. Para que serve o movimento negro? E a justiça permanece na vala.
Sempre entendeu seu papel de mulher na sociedade, mulher negra e pobre, como a lutadora incessante. (De novo, Catita? Não cansa não de ficar brigando?) Pode parecer de hoje que fala em feminismo, mais uma modinha, mas é feminista desde o espasmo causado na reunião de família, quando no meio das senhorinhas todas falou, da altura de seus onze-doze anos, da casa que teria e da vida que queria, autônoma, independente de marido. Nunca esquece o amarelo da página da revista que lhe inspirou o desejo, o zumbido das senhoras a enrouquecer seus argumentos, a perplexidade ante a tia-avó, sempre solteira e independente, mas que “não lhe servia de exemplo”. Compartilha hoje sua experiência com adolescentes do coletivo feminista do colégio em que leciona, de maioria não negra, de maioria não pobre (o dinheiro não é um problema, mas o que se faz com e por ele), meninas que amam suas mães, avós, tias, professoras, mas se querem mulheres mais fortes; aprendem com Simone de Beauvoir, mas vão além, e aprendem também com Laudelina de Campos Melo; trouxeram à escola para falar com todas e todos sobre feminismo a Djamila Ribeiro, uma outra preta e acadêmica, adjetivos raramente juntos numa mulher só; têm consciência de seus privilégios, querem que todos os lugares de fala sejam ocupados. De que adianta tanta consciência, se “Estudante sofre estupro coletivo em Peruíbe”? Se em “BBB e A Fazenda: a mídia enaltece agressores de mulheres”? Se “Aeromoças russas têm cortes nos salários por serem gordas demais”? Se “Taxa de assassinato de mulheres negras cresce 22% em 10 anos”? Se “Assédio é problema mais grave que superlotação e demora de ônibus”? Se “Pai espanca filha que perdeu virgindade e é absolvido”? Para que servem os feminismos? E a justiça continua no buraco.   
Não cresceu ela num ambiente esclarecido, ao contrário, sexo sempre foi um tabu, sexualidades, no plural então... safadezas. Mas saiu desse obscurantismo, aleluia!, quando compreendeu a sua sexualidade e vem dia a dia compreendendo as outras tantas, as quais defende, pelas quais também luta. Atua junto a seus (ex)alunos e colegas professores para que a diversidade seja respeitada, além do uso de um filtro temporário de arco-íris na rede social. Discute com sua amada - de forma saudável, embora dorida –, após o santo café da manhã dominical, os embates entre militância e medo, entre visibilidade e exposição; procuram achar juntas um caminho de atendimento às demandas de ambas, de acolhimento às inseguranças e decisões de cada uma, no tempo de cada uma. De que adianta tanto esclarecimento, tanto amor, se “Os desafios de uma vereadora jovem, mulher e bissexual na Câmara Municipal de São Paulo” vão de olhares tortos a ameaças, sofridos lá dentro da casa da lei? Se “Funcionária transexual é demitida após denunciar agressão e discriminação no DF”? Se “Homem transexual é encontrado morto após ter casa invadida”? Se “Justiça concede liminar que permite tratar homossexualidade como doença”? Se “Visibilidade lésbica ainda é desafio para garantia de acesso a direitos”? E a justiça queda-se na cova.
Como escolher um só assunto para escrever a crônica, Antonio Prata? Se tudo isso e mais me afeta e atinge sem cessar, sem direito a trégua? E esse textão, que vão acusar de panfleto, de manifesto sem quase nada além de grito? Quase nada além de um amontoado de manchetes de menos de cinco meses entre si, colhidas a esmo de um amontoado muito maior que nem chegou a ser noticiado? Chamo de crônica muito menos pelo aspecto literário que pelo estado revelado e constante de mim e do mundo. De que adianta acordar todos os dias, saber ler, conseguir ouvir, locomover-me para o trabalho, tentar vivenciar as culturas, lutar, gritar, amar, se nem capacidade de terminar esse texto sem evocar os perturbadores versos de Adelaide Ivánova eu tenho?
“De que adiantaria meu silêncio?

De quem estaria meu silêncio a serviço?”
Flip 2017 - Fruto estranho: Adelaide Ivánova

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Primeira impressão

Sou prova viva de que, se a primeira impressão fica, ela pode se transformar ao longo do tempo. E ainda bem, porque essa constatação pode aliviar-me da imensa grosseria que imprimo às pessoas no primeiro contato, pessoas essas que – oxalá – permanecem na minha vida, de forma contínua ou não. Vamos aos casos comprobatórios de minha teoria. São três, em ordem aleatória.
Caso 1: Eneida, parceira querida e competentíssima de trabalho, sempre (re)conta aos risos e com certo ar reprovador que, no dia de sua entrevista com a coordenadora de Português do colégio em que estamos até hoje, eu entrei na sala e ela, toda feliz por ver um rosto conhecido, empolgada, disse que me conhecia e eu respondi com um sério, nada empolgado e duro, “da USP”. Não foi por mal, Nê, querida, era minha tensão por resolver as coisas e a falta, naquele momento, de intimidade entre nós. Daí meu distanciamento. Só posso insistir no eterno pedido de desculpas. E ficar feliz de termos um laço tão lindo e verdadeiro, mesmo não sendo amigas de estar uma na casa da outra ou de sair ou de ligar pra jogar conversa fora. Nosso lugar de amizade é outro e tão lindo quanto outros.

Caso 2: Vinícius, ex-aluno, ex-estagiário, ex-professor de equipe por mim coordenada, atual colega de trabalho e grande amigo-confidente, ama contar especialmente para meus alunos atuais - e também em tom um tanto quanto magoado -  o quanto teve medo de mim no primeiro dia de aula dele, adolescente, em que eu exemplificava para que servia o encosto de uma cadeira e comentava sobre esse esquecimento das criaturinhas que se sentavam na fileira da parede, que desprezavam invariavelmente parte tão importante de tal móvel secular. O Vini, coitado, não só era um dos que se sentavam na tal fileira, como também estava desprezando o encosto, e ainda demorou minutos e perceber que eu me dirigia a ele. Não foi por mal, Vini, querido, era (é?) meu jeito às vezes irônico, às vezes sério, mas sempre, ah... pedagógico, de ensinar alguma coisa. Daí minha rudeza. Só posso insistir no eterno pedido de desculpas. E ficar feliz de termos um laço tão lindo e verdadeiro, a ponto de, mesmo brigando contigo, rir à beça de você conseguir se perder quando quer fazer a gentileza de me deixar em casa, caminho já feito inúmeras vezes! (Fora as outras peripécias que não posso contar. Ainda!)

Caso 3: Denise. Denise foi o nome que li na lista afixada no mural da FFLCH no início de 1994. Lista de resultado da “declaração de interesse por vaga”. A única vaga que havia sobrado para Letras, após a primeira chamada da Fuvest. Eu era a quarta colocada. Com certeza um dos dois primeiros colocados conseguiria (não lembro mais os nomes, mas eram garotos). Mas no dia marcado para verificar a lista, estava lá o nome da Denise. Denise era a terceira da lista. Naquele dia, voltando para casa, resolvi descer do ônibus em Santana e me matriculei no cursinho. O magistério na escola estadual, querida formação secundarista, não havia me dado base para as exatas e parte de bio. A mensalidade era o salário que eu tinha como professora da educação infantil. O pai serralheiro prometera – e cumprira a duras penas – o dinheirinho que eu precisasse pra condução (e muito café e amendoim para estudar horas e horas a fio, com a outra amiga, dupla inseparável de pretas únicas metidas ali). Não comprei uma agulha naquele ano. E não é força de expressão: eu já costurava e, com muito mais tempo e energia que hoje, fazia minhas roupas. A Tina, ainda boa de saúde, vez por outra me surpreendia com uma fazenda de viscose ou popeline. Foi o ano da URV. Não vou nem explicar isso aqui... (santo Google que te ajude, irmão!).    Mas ao fim daquele ano, consegui minha vaga na USP, com pontuação que, diziam alguns professores, poderia ser para o que eu quisesse (eles não entendiam que eu queria Letras, muito menos Português... Ouvi até o desprezível clássico “Que desperdício”...). Não tenho orgulho do meu esforço, conjunto ao de minha família, para que essa conquista se fizesse em minha vida. Chorei antes pelos outros tantos amigos e familiares que nunca nunca nunca tiveram a chance que tive, nem mesmo de sonhar com isso.
Mas voltemos a Denise. Em 1995, por essas ironias do destino, fizemos alguma disciplina juntas e então descobrimos essa nossa história. E, claro, sempre lhe repeti que ela havia sido quem me tirou a vaga. Não foi por mal, Dê, querida, era imaturidade. Daí minha bestice. Só posso insistir no eterno pedido de desculpas. E ficar feliz por, mais de 20 anos depois, você ter me reconhecido num auditório de um importante congresso de nossa área, ter me chamado, trocado telefone, almoçado, abraçado, conversado, assistido à minha apresentação e marcado de não mais nos perdermos (até porque, mais ironias do destino, moramos no mesmo bairro!). Faltou dizer, Dê, que lá nos idos de 90, depois de conhecê-la realmente, sempre admirei sua inteligência. E isso se renovou no nosso mais recente encontro.


A cronista sabe o precedente que abre com tais confissões. E de antemão insiste no eterno pedido de desculpas por todas as suas caras de poucos amigos, coração de pedra, palavras ásperas (sinceras?!) que atirou nos seus primeiros encontros. E fica feliz de você se dar ao trabalho de lembrar e comentar minha falta de polidez, por que isso significa que primeiro você leu essa crônica. Então antes ainda me acompanha na vida física ou virtual para ter chegado a lê-la. Então você é daqueles que permanecem na minha vida. Então a primeira impressão fica, mas se transforma. Ainda bem!