Sou prova viva de que, se a primeira impressão
fica, ela pode se transformar ao longo do tempo. E ainda bem, porque essa
constatação pode aliviar-me da imensa grosseria que imprimo às pessoas no
primeiro contato, pessoas essas que – oxalá – permanecem na minha vida, de
forma contínua ou não. Vamos aos casos comprobatórios de minha teoria. São
três, em ordem aleatória.
Caso 1: Eneida, parceira querida e
competentíssima de trabalho, sempre (re)conta aos risos e com certo ar
reprovador que, no dia de sua entrevista com a coordenadora de Português do
colégio em que estamos até hoje, eu entrei na sala e ela, toda feliz por ver um
rosto conhecido, empolgada, disse que me conhecia e eu respondi com um sério,
nada empolgado e duro, “da USP”. Não foi por mal, Nê, querida, era minha tensão
por resolver as coisas e a falta, naquele momento, de intimidade entre nós. Daí
meu distanciamento. Só posso insistir no eterno pedido de desculpas. E ficar
feliz de termos um laço tão lindo e verdadeiro, mesmo não sendo amigas de estar
uma na casa da outra ou de sair ou de ligar pra jogar conversa fora. Nosso
lugar de amizade é outro e tão lindo quanto outros.
Caso 2: Vinícius, ex-aluno, ex-estagiário, ex-professor
de equipe por mim coordenada, atual colega de trabalho e grande
amigo-confidente, ama contar especialmente para meus alunos atuais - e também em
tom um tanto quanto magoado - o quanto
teve medo de mim no primeiro dia de aula dele, adolescente, em que eu
exemplificava para que servia o encosto de uma cadeira e comentava sobre esse
esquecimento das criaturinhas que se sentavam na fileira da parede, que
desprezavam invariavelmente parte tão importante de tal móvel secular. O Vini,
coitado, não só era um dos que se sentavam na tal fileira, como também estava desprezando
o encosto, e ainda demorou minutos e perceber que eu me dirigia a ele. Não foi
por mal, Vini, querido, era (é?) meu jeito às vezes irônico, às vezes sério,
mas sempre, ah... pedagógico, de ensinar alguma coisa. Daí minha rudeza. Só
posso insistir no eterno pedido de desculpas. E ficar feliz de termos um laço
tão lindo e verdadeiro, a ponto de, mesmo brigando contigo, rir à beça de você
conseguir se perder quando quer fazer a gentileza de me deixar em casa, caminho
já feito inúmeras vezes! (Fora as outras peripécias que não posso contar.
Ainda!)
Caso 3: Denise. Denise foi o nome que li na
lista afixada no mural da FFLCH no início de 1994. Lista de resultado da “declaração
de interesse por vaga”. A única vaga que havia sobrado para Letras, após a
primeira chamada da Fuvest. Eu era a quarta colocada. Com certeza um dos dois
primeiros colocados conseguiria (não lembro mais os nomes, mas eram garotos).
Mas no dia marcado para verificar a lista, estava lá o nome da Denise. Denise
era a terceira da lista. Naquele dia, voltando para casa, resolvi descer do ônibus
em Santana e me matriculei no cursinho. O magistério na escola estadual,
querida formação secundarista, não havia me dado base para as exatas e parte de
bio. A mensalidade era o salário que eu tinha como professora da educação
infantil. O pai serralheiro prometera – e cumprira a duras penas – o dinheirinho
que eu precisasse pra condução (e muito café e amendoim para estudar horas e
horas a fio, com a outra amiga, dupla inseparável de pretas únicas metidas ali).
Não comprei uma agulha naquele ano. E não é força de expressão: eu já costurava
e, com muito mais tempo e energia que hoje, fazia minhas roupas. A Tina, ainda
boa de saúde, vez por outra me surpreendia com uma fazenda de viscose ou
popeline. Foi o ano da URV. Não vou nem explicar isso aqui... (santo Google que
te ajude, irmão!). Mas ao
fim daquele ano, consegui minha vaga na USP, com pontuação que, diziam alguns
professores, poderia ser para o que eu quisesse (eles não entendiam que eu
queria Letras, muito menos Português... Ouvi até o desprezível clássico “Que
desperdício”...). Não tenho orgulho do meu esforço, conjunto ao de minha
família, para que essa conquista se fizesse em minha vida. Chorei antes pelos
outros tantos amigos e familiares que nunca nunca nunca tiveram a chance que
tive, nem mesmo de sonhar com isso.
Mas voltemos a Denise. Em 1995, por essas
ironias do destino, fizemos alguma disciplina juntas e então descobrimos essa
nossa história. E, claro, sempre lhe repeti que ela havia sido quem me tirou a
vaga. Não foi por mal, Dê, querida, era imaturidade. Daí minha bestice. Só
posso insistir no eterno pedido de desculpas. E ficar feliz por, mais de 20
anos depois, você ter me reconhecido
num auditório de um importante congresso de nossa área, ter me chamado, trocado
telefone, almoçado, abraçado, conversado, assistido à minha apresentação e
marcado de não mais nos perdermos (até porque, mais ironias do destino, moramos
no mesmo bairro!). Faltou dizer, Dê, que lá nos idos de 90, depois de conhecê-la
realmente, sempre admirei sua inteligência. E isso se renovou no nosso mais
recente encontro.
A cronista sabe o precedente que abre com tais
confissões. E de antemão insiste no eterno pedido de desculpas por todas as
suas caras de poucos amigos, coração de pedra, palavras ásperas (sinceras?!)
que atirou nos seus primeiros encontros. E fica feliz de você se dar ao
trabalho de lembrar e comentar minha falta de polidez, por que isso significa
que primeiro você leu essa crônica. Então antes ainda me acompanha na vida
física ou virtual para ter chegado a lê-la. Então você é daqueles que permanecem
na minha vida. Então a primeira impressão fica, mas se transforma. Ainda bem!
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