domingo, 13 de maio de 2018

13 de maio


Hoje é um domingo como alguns outros anos que todos nós já tivemos, mas eu e meus irmãos vivemos de modo mais marcante. 13 de maio para nós é uma data muitas vezes tripla: dia da Abolição da Escravatura no Brasil (1888), dia das mães (sempre que cai no segundo domingo de maio) e aniversário da Tina, a tiavó que nos criou (nascida em 1925). Três datas que hoje – algumas desde antes - são incômodas.

Da Abolição

Não sei o Sandro, mas a Fabiana e eu tivemos, cada uma em seu momento, crises agudas com a escola e a maldita “comemoração” do 13 de maio. Todo ano do primário (hoje Fundamental I), invariavelmente, tínhamos de pintar um desenho mimeografado, sim, já passamos todos dos quarenta, somos da época daquele álcool inebriante na sala de aula e raríssimas folhas em branco para desenhar e pintar o que quiséssemos à mão livre. Na embriagada folha, empoçada às vezes, bem mal feita, mas centralizada, a figura de um escravo liberto. O corpo desnudo obrigatoriamente devia ser pintado de marrom, pois o preto encobria os demais traços do desenho e as professoras diziam que “não dá pra ver nada se pintar de preto”. Também não dava para pintar de “cor da pele”... Pele das bonecas, das figurinhas, das crianças dos filmes, das pessoas das novelas, das crianças fora da família. O farrapo de calça deveria ficar branco, no máximo um amarelinho, marrom pintado com pouca pressão dos dedos ou acinzentado, feito com pó do grafite do lápis de escrever circulado cuidadosamente pela pontinha do dedo indicador, afinal, não tinha cinza na caixa de 12 cores do lápis de cor. Tudo porque precisava aparentar sujeira e miséria, já que as roupas eram feitas de sacos e eles, os escravos, viviam em péssimas condições. Não tinha chãozinho, nenhuma graminha ou florzinha colorida sequer, um céu azul e sol poderia ser até sugerido pelas cores, mas não estavam desenhados, então “você não está pintando certo” (lembro de, pelo menos uma vez, ter feito a chuva). Não tinha cenário ao fundo, no máximo a corrente partida, muitas vezes em plano maior que o escravo, com a data e a nomeação, que eu contornava de canetinha vermelha, que eu não emprestava para nenhum bruto calcador de ponta, descuidado com a caneta alheia, a qual deveria durar o ano letivo todo. Vagamente lembro de ter o nome ou o rosto da tal princesa salvadora no canto da folha. Quando comparava a outras datas, outros desenhos, tudo isso incomodava bastante, mas nada nada nada era mais irritante que o cabelo: a brilhante, batida e ofensiva ideia das professoras era colar bombril no topo da cabeça do escravo. Claro, cabelo de preto é duro feito palha de aço, nenhum material melhor a representá-lo. Era só olhar para as minhas tranças, tocar nelas que eu perceberia como a fibra era áspera, rebelde, tal o bombril. Não podia ser uma lãzinha preta não, professora? Eu sabia fazer os rolinhos... Nós e alguns poucos amigos negros tínhamos de viver essa maravilha todo santo 13 de maio! Poucos, pois embora tenha estudado na escola pública a vida toda, num tempo em que ainda havia certa qualidade, poucos eram os negros que a frequentavam e quanto mais eu avançava nos estudos, menos via meus iguais “de cor”, como ainda éramos designados. Sempre desconfiei daquela história que era contada nos livros, do quanto tinha de agradecer à tal princesa, do quanto os escravos isso, os escravos aquilo. Os escravos. Os negros, os pretos, é conceito ressignificado – fora do espaço doméstico – muito muito tardio.
Hoje, 13 de maio de 2018, já lá vão 130 anos de Abolição.  E nós pretos, nós negros seguimos na luta ainda para sobreviver. Se não há avanços? Sim, muitos. Mas quanto tempo e consciência também dos não-negros ainda são necessários para deixarmos de ver retrocessos todo dia, nas escolas, nas ruas, nas conversas de bar, nas artes, na mídia, nas notícias, nas universidades, no trabalho, nas lojas, na política...? Quantos de nós ainda tentarão invisibilizar? Quantos de nós tentarão ainda silenciar? A quantos forem, vamos mostrar e gritar que estamos aqui, em pé, juntos. E seguindo.

Do Dia das Mães

Naquele tempo e ainda hoje em muitas escolas se comemora o dia das mães, desde apenas com uma “lembrancinha” feita pelo aluno, geralmente com uma pequena contribuição da família para o material usado, até com uma festinha, dancinhas, musiquinhas, decoração e presença das mães no recinto. Pois bem, eu e meus irmãos tivemos sempre de explicar que não tínhamos mãe. Os olhos da professora e de alguns dos coleguinhas se esbugalhavam, como se tivéssemos dito alguma blasfêmia. E como ficar pior? Bastava dizer que ela morreu quando eu era bem pequena. Meu irmão tinha só 21 dias de nascido. Aí as expressões se entristeciam e o inevitável “coitadinha” vinha. Mas isso não surtia qualquer mudança no desenho mimeografado com a palavra “mãe” ou “mãezinha” inscrita. Palavra que eu nunca disse. Tina sempre fez questão de contar nossa história, de deixar claro que não era nossa mãe, que era tia do nosso pai, a quem ajudou a criar e que cedo casou, mas cedíssimo enviuvou. Para manter a família unida, reza a lenda, Tina “pegou os quatro de volta” e terminou de criar todo mundo, somando na casa o salário de empregada doméstica dela e o de metalúrgico do meu pai. E todo dia operando o milagre da divisão, raras vezes o da multiplicação e sempre convivendo com o fantasma da subtração. Cada um de nós teve de aprender a lidar com essa falta, com essa ausência praticamente sem ter sido presença, da mãe Terezinha, cujas poucas histórias eram contadas mais pela Tina que pelo pai ou talvez até mais pelo quadro na parede, a nos lembrar sua cor, seu sorriso, seus cabelos, seus sonhos, sua roupa anos 1970! As lembrancinhas da escola iam para a Tina, claro, mas eu quase sempre fazia um bilhetinho à parte, em que podia escrever “Tina” bem bonito e agradecer de forma mais eu que as trinta e poucas, quarenta lembrancinhas iguais da escola.
Hoje, faz 19 anos que não tem bilhetinho, nem presente, nem flores, nem almoço especial, nem mesmo um telefonema para a Tina. Se eu estivesse na escola e fizessem a festinha, teria de relatar agora duas mortes. Consola que em minhas preces e atos elas estão presentes, às vezes mais uma que outra, mas gratidão igual às duas por realmente darem a vida por mim e pelos meus irmãos. Nas preces e nos atos também a defesa para que a escola seja realmente um espaço de acolhimento, não de exclusão, que não “comemore” de forma tão impensada tantas datas, desconsiderando as diversidades todas existentes, as histórias pessoais já suficientes para quebrar o padrão, do que “é normal”, do “sempre foi assim”, de que o diferente supera, “a gente é forte”. A custa de quê, de quanto?

Do aniversário

    Acho que essa era a única data que realmente importava! Não tinha intervenção da escola, embora bastante impedimento financeiro. Não me lembro de dar presente para Tina quando criança, possivelmente porque era o pai que comprava e nós dávamos juntos. A memória da família é a Fabiana, estou até ouvindo-a dizer “mas como você não lembra, irmã?”. Eu lembro de adolescente, já trabalhando em escola infantil, de comprar um corte de tecido, uma “fazenda” como se dizia, para eu fazer ou mandar fazer vestido para ela. Era um presente que gostávamos de trocar. Ou eu tricotava uma touca ou cachecol para ela. Mas o que não esqueço mesmo é de me ver escrevendo sempre para ela, desde criança. “Que tanto você escrivinha aí, menina?” “Sabe que escrivinhar não existe, né? É escrever. Nunca deixe de estudar”.
Hoje não tenho certeza se isso é memória vivida ou criada, mas que a ouço dizendo, ouço! Mesmo jovem, quando “a faculdade virou” minha cabeça! E há dezenove anos não tem presente, nem fazenda, nem carta. Mas, relatados também pelo caçula, tem angústia, aperto no peito, dor de barriga, insônia, vontade de chorar... Uma semana antes do dia 13 de maio. Que passa, quando o escrivinhado fica pronto.

13 de maio de 2018, da série “Tirem as vendas, senhores”.