quinta-feira, 18 de abril de 2013

Fui eu! Fui eu! Fui eu! (ou Clichês e Contexto)

[23h] [eles]

¾ Eu devia te colocar pra fora de casa hoje! Mas eu vou te dar uma chance: quem sabe uma noite no sofá refresca a sua memória?
¾ Mas eu...
Blam! Bate forte a porta do quarto. 

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¾ Eu juro que não sei como isso aconteceu. Eu não fiz nada. Você é o único amor da minha vida. Eu jamais te traí, nem te trairia, ainda mais agora, que estamos tão bem: casa nova, emprego novo...
 
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[19h30] 

     ¾ Ei, o que é isso? (desatando-se bruscamente do abraço). Não acredito! Quem é ela? Que cara de pau! Como você pôde fazer isso com a gente? E nem tentou esconder. Queria mesmo que eu pegasse? É isso? Nossa história termina assim, nesse descaramento? 

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[14h] 

¾ Aí, hein, cara?! Gostei de ver! O amor se espalha no ar! Pra quê vergonha, né, não?!
¾ ???
¾ Só não vai perder totalmente a compostura, viu? Conselho de amigo: você é novo no emprego, não exagera na descontração.
¾ Mas, como assim? Sobre o que você
¾ Sem crise, cara! Tô julgando não. É só um toque. Valeu?! Fui!
¾ ??? 

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[09h]  

     Por que será que elas estão agindo assim? Essas risadinhas, alguns olhares duros, questionadores, outros parecem... insinuantes! Não, é loucura minha. Mas, e eles? Mal os conheço, por que esse olhar tão cúmplice? Droga. E como é que faz essa planilha mesmo?  

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[06h40] [eu] 

     “Próxima estação Sé. Acesso à Linha 1 – Azul. Desembarquem pelo lado esquerdo do trem.” 

     Qualquer comparação que se faça – lata de sardinha, pau de arara, estufa de granja, carro de boi (sem lirismo, Rosa!) - é válida, mas insuficiente. Insuportável? E como conseguimos passar por isso todos os dias? Não conseguimos: estamos submetidos aos empurrões, cotoveladas, pisões, apertos, calor, capacidade máxima de lotação, velocidade reduzida, maior tempo de parada. Todos os dias. Às caras feias, aos xingamentos, às (quase) brigas, à falta de educação. Todos os dias.
     Mas hoje foi muito pior. Praticamente sem tocar os pés no chão e sem alcançar barra de apoio horizontal ou vertical, quando o mar de gente irrompeu, fui lançada com tal violência que, por milésimos de segundos, senti-me voando... direto a um colarinho azul-celeste impecavelmente engomado. Ei, moço! Ele nem me ouviu.
     E lá se foi, sabe Deus para onde, meu beijo involuntário no dia de estreia do vermelho terroso...  

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Nêgo de Deus!


Lindos cabelos loiros e olhos de um azul profundo. Usava uniforme. Mediu-me de cima a baixo e disse que eu não poderia ficar ali, onde era a entrada principal da loja, dessas grandes, de roupas e outros acessórios. Eu lhe disse que estava apenas aguardando um japonês amigo meu, que me ajudaria nas compras, porém ela me “orientou” a ficar em outra entrada, de serviço, daquelas que você tem de sair para a rua, dar a volta, entrar em um beco escuro. Era noite sem lua. Tive medo e, quando vi, eu já estava correndo, descalça, em uma estrada ladeada de mato alto. Meus pés doíam, meu coração apertou, quase perdi o ar.
Com bem menos elementos oníricos, já vivi essa situação várias vezes e sempre foi muito chato, embora no começo, quando eu não sabia lidar com isso, era muito pior. Como dizem que o problema geralmente não é o que você sonhou, mas por que, logo pensei que devia ser por causa de um tal Marco Infeliz que está em voga nos últimos tempos. Mas era manhã do domingo de Páscoa (o último dos meus “inta”) e a lembrança mais forte da semana era de minha tia-avó, que seguia à risca o ritual católico e nos levava junto com sua fé.
A Tina foi uma dessas pessoas que “teve o azar de ser negra”. E mais: mulher, pobre, nascida no interior de Minas, na década de 20 do século XX. Nunca vou me esquecer das histórias das primeiras casas em que trabalhou, lá pelos 5, 6 anos de idade: as “patroas” prometiam à sua mãe que a pequena ajudaria nos afazeres domésticos durante um período do dia e no outro seria levada à escola. Ela nunca pisou em uma escola. Comia os bicos de pepino e outros restos que furtivamente escondia ou pegava do lixo, porque “negro é animal”. Aos fins de semana, quando voltava para a casa paterna, silenciava ante as ameaças que havia recebido e o medo de decepcionar seus pais. Ouvi tantas vezes essas histórias, que parece que ela está aqui ao meu lado, contando-me mais uma vez: não é para você ficar triste. É para saber que isso hoje não acontece mais, mas muito ainda precisa ser feito, e tudo começa no estudo.
  Filha de mãe quase beata e pai kardecista, Tina escolheu o caminho do sincretismo, inicialmente da Umbanda e do Catolicismo. Mas no entra-e-sai na nossa casinha de tijolo sem reboco, convivi com maristas, padres, evangélicos, budistas, judeus... Aconselhamentos mútuos, trocas de receitas culinárias, tomada de decisões, orações, lembranças de outros tempos, tudo à volta do cafezinho com biscoito-trança (cuja receita perdeu-se nalguma mudança minha!)
 Pois essa mulher-negra-pobre, que aprendeu a ler com a ajuda das filhas das patroas da adolescência, que fez de tudo para que eu não trabalhasse antes dos 16, mesmo com todas as dificuldades que tínhamos (lugar de criança é na escola, sem estudar, não se é nada na vida), é o maior exemplo que tenho até hoje de coragem, honestidade e justiça. Demorei muito a entender a necessidade – e perder a vergonha! – de voltar ao açougue, com o pacotinho de meio quilo de carne, e dizer Moço, isso não é acém, eu pedi carne de segunda, não sebo e restos!
Se o que trago em mim hoje é herança de uma “terra amaldiçoada” (que bíblia é essa, meu Deus?) ou “azar”, Vossa Excelência nunca deve ter entendido o que “dizem” os versos “deve ser legal / ser negão no Senegal”. E só um aviso: hoje meus pés não doem, meu coração infla e o ar me sobra.  
Janeiro de 1995: ingresso na USP