segunda-feira, 8 de abril de 2013

Nêgo de Deus!


Lindos cabelos loiros e olhos de um azul profundo. Usava uniforme. Mediu-me de cima a baixo e disse que eu não poderia ficar ali, onde era a entrada principal da loja, dessas grandes, de roupas e outros acessórios. Eu lhe disse que estava apenas aguardando um japonês amigo meu, que me ajudaria nas compras, porém ela me “orientou” a ficar em outra entrada, de serviço, daquelas que você tem de sair para a rua, dar a volta, entrar em um beco escuro. Era noite sem lua. Tive medo e, quando vi, eu já estava correndo, descalça, em uma estrada ladeada de mato alto. Meus pés doíam, meu coração apertou, quase perdi o ar.
Com bem menos elementos oníricos, já vivi essa situação várias vezes e sempre foi muito chato, embora no começo, quando eu não sabia lidar com isso, era muito pior. Como dizem que o problema geralmente não é o que você sonhou, mas por que, logo pensei que devia ser por causa de um tal Marco Infeliz que está em voga nos últimos tempos. Mas era manhã do domingo de Páscoa (o último dos meus “inta”) e a lembrança mais forte da semana era de minha tia-avó, que seguia à risca o ritual católico e nos levava junto com sua fé.
A Tina foi uma dessas pessoas que “teve o azar de ser negra”. E mais: mulher, pobre, nascida no interior de Minas, na década de 20 do século XX. Nunca vou me esquecer das histórias das primeiras casas em que trabalhou, lá pelos 5, 6 anos de idade: as “patroas” prometiam à sua mãe que a pequena ajudaria nos afazeres domésticos durante um período do dia e no outro seria levada à escola. Ela nunca pisou em uma escola. Comia os bicos de pepino e outros restos que furtivamente escondia ou pegava do lixo, porque “negro é animal”. Aos fins de semana, quando voltava para a casa paterna, silenciava ante as ameaças que havia recebido e o medo de decepcionar seus pais. Ouvi tantas vezes essas histórias, que parece que ela está aqui ao meu lado, contando-me mais uma vez: não é para você ficar triste. É para saber que isso hoje não acontece mais, mas muito ainda precisa ser feito, e tudo começa no estudo.
  Filha de mãe quase beata e pai kardecista, Tina escolheu o caminho do sincretismo, inicialmente da Umbanda e do Catolicismo. Mas no entra-e-sai na nossa casinha de tijolo sem reboco, convivi com maristas, padres, evangélicos, budistas, judeus... Aconselhamentos mútuos, trocas de receitas culinárias, tomada de decisões, orações, lembranças de outros tempos, tudo à volta do cafezinho com biscoito-trança (cuja receita perdeu-se nalguma mudança minha!)
 Pois essa mulher-negra-pobre, que aprendeu a ler com a ajuda das filhas das patroas da adolescência, que fez de tudo para que eu não trabalhasse antes dos 16, mesmo com todas as dificuldades que tínhamos (lugar de criança é na escola, sem estudar, não se é nada na vida), é o maior exemplo que tenho até hoje de coragem, honestidade e justiça. Demorei muito a entender a necessidade – e perder a vergonha! – de voltar ao açougue, com o pacotinho de meio quilo de carne, e dizer Moço, isso não é acém, eu pedi carne de segunda, não sebo e restos!
Se o que trago em mim hoje é herança de uma “terra amaldiçoada” (que bíblia é essa, meu Deus?) ou “azar”, Vossa Excelência nunca deve ter entendido o que “dizem” os versos “deve ser legal / ser negão no Senegal”. E só um aviso: hoje meus pés não doem, meu coração infla e o ar me sobra.  
Janeiro de 1995: ingresso na USP

12 comentários:

  1. Agora entendi quando você disse que precisava escrever... Lindo mesmo! O texto e a história!

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  2. Obrigada, querida! Essa necessidade tem aumentado cada vez mais... Dá até um pouco de medo!

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  3. Das coisas boas que as redes sociais nos proporcionam: passeando pelo FB, encontrei essa joia postada pela Karla. Como sempre, que coisa deliciosa, prazeirosa e enriquecedora ler o que você escreve. Tenha medo não, compartilhe sempre.
    Um abraço carinhoso e saudoso

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    1. Puxa, Rô! Obrigada! Você sabe o quanto eu a considero! Saudade de nossas conversas, de suas ideias!
      Forte abraço!

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  4. UAU !!!!!!
    UFA !!!!!!
    a respiração acelerou e o coração pulsou forte, expandiu.
    OBRIGADO !!!

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  5. Catita, morro de saudades de você. Que história emocionante! Sem palavras!

    Beijos, Elis

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  6. Ah, querida Elis! Eu não morro não, eu vivo com saudades de ti! E vc "sem palavras" é-me impensável (ou seria inefável?)! rsrs. Bjs

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  7. Oi, Catinha,
    lindos os textos e, claro, este sobre a Tina, o mais mais de todos. Aproveitando a "deixa": admiro você ASSIM, sabe? Com letras maiúsculas!!! Vocês - afinal a Tina aos poucos também foi virando uma referência minha... - são uns mulherões e tanto.
    beijocas,

    Mila

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  8. Ai, Mila! Obrigada sempre pelo "mulherão" (tenho dificuldade de aceitar esse aumentativo! rsrs) e pela amizade de tanto tempo, emoções e ideias!
    bj

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