quinta-feira, 6 de novembro de 2014

A encantadora de flores

     A criança procurava uma flor para presentear a mãe. Uma não, a flor, com A Gigante e um F que ela nem aprendera ainda a fazer.
     Disseram-lhe para buscar a flor mais bela, a rosa amarela.
     Acenou para as vermelhas, desviou das azuis e a amarela convidou:
     ¾ Rosa amarela, flor mais bela, posso levar você pra minha mãe?
     ¾ Mais bela, eu? Não, querida criança, há outras tão belas quanto eu. Por que não tenta uma mais nobre, a orquídea?
     Brincou com os lírios, mergulhou nas tulipas e a orquídea reverenciou:
     ¾ Orquídea, flor mais nobre, posso levar você pra minha mãe?
     ¾ Mais nobre, eu? Não, querida criança, há outras tão nobres quanto eu. Por que não tenta uma mais forte, a boca-de-leão?
     Pendurou-se na primavera, lutou com os antúrios e para a boca-de-leão rugiu:
     ¾ Boca de leão, flor mais forte, posso levar você pra minha mãe?
     ¾ Mais forte, eu? Não, querida criança, há outras tão fortes quanto eu. Por que não tenta uma flor mais singela, a flor do campo?
     Saltitou as boninas, acariciou as violetas e para a flor do campo sorriu:
     ¾ Flor do campo, flor mais singela, posso levar você pra minha mãe?
     ¾ Mais singela, eu? Não, querida criança, há outras tão singelas quanto eu. Por que não tenta uma flor mais viçosa, o girassol?
     Bebeu no copo-de-leite, dançou com a gérbera e o girassol circundou:
     ¾ Girassol, flor mais viçosa, posso levar você pra minha mãe?
     ¾ Mais viçosa, eu? Não, querida criança, há outras tão viçosas quanto eu. Por que não tenta uma mais perfumada, o jasmim?
     Cheirou o lisianto, encantou-se com a camélia e com o jasmim se deliciou:
     ¾ Jasmim, flor mais perfumada, posso levar você pra minha mãe?
     ¾ Mais perfumada, eu? Não, querida criança, há outras tão perfumadas quanto eu. Por que não tenta uma mais eterna, a sempre-viva?
     Embolou-se com a hortênsia, cantou com a estrelítzia e com a sempre-viva dengou:
     ¾ Sempre-viva, flor mais eterna, posso levar você pra minha mãe?
     ¾ Mais eterna, eu? Não, querida criança, há outras tão eternas quanto eu. E nenhuma na verdade é. Nem nada é eterno, meu pequeno.
     O menino voltou para casa pensando florido. Pegou o papel mais lindo que tinha e com as cores todas desabrochou ali todas as flores que encontrou, todas as que imaginou. E dormiu no perfume delas. Quando a mãe chegou, viu o próprio rosto naquele desenho do filho. E das mãos da mãe rebentaram botões de uma flor ainda não nascida.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Discurso (in)direto

Não costumo divulgar minhas preferências partidárias na política. É apenas um direito meu o de não me manifestar. Isso não lhe dá o direito de me acusar de alienada, embora você possa julgar que eu não tenha preferências. Isso é direito seu. Respeito.
Não costumo estampar camisetas dizendo “não votei em...”, porque se quem ganhou não foi meu candidato ou minha candidata, o que importa é como agirei a partir de então. Humilhar você ou insistir no “eu te disse” não é um princípio meu. Eu não preciso aceitar sua opinião. Eu a respeito.
Não costumo me expressar e dar as costas, porque se falei, quis audiência; se consegui audiência, fui ouvida. Isso não dá o direito à plateia de me agredir, embora ela possa sim se expressar a mim. É um direito dela. Respeito.
Não costumo brigar pela minha candidata ou pelo seu candidato. É direito meu o de escolher (não) panfletar, (não) segredar ou (não) silenciar. Também é um direito seu. Isso não nos dá o direito de nos ofender mutuamente, embora um possa querer tentar convencer o outro a mudar de ideia. Respeitemo-nos.
Não costumo ofender amigos e familiares no Facebook, “desfazer amizades”, desativar a página, ordenar que meu oponente não se manifeste, censurando-o, cerceando-o. Lidar com a diferença é natural para mim, o que não significa que eu não me sinta atacada, nem que meu silêncio seja submissão. É antes vigília. E quando acho necessário falar, falo ou agir, ajo. A minha presença, tal pedra no meio do caminho ou flor no asfalto, sempre foi e é minha arma contra o que me impingem nos rótulos que me dão: mulher, preta, pobre, suja, descabelada, ingênua, professora...

Acredito que as opiniões diferentes são constituintes do sistema democrático. Acredito que o respeito a elas mantém o diálogo, que em sendo diálogo, é civilizado. Não acredito que gritos reais ou virtuais sejam argumentos, mas sei que eles machucam. Defendo que discurso de ódio não é liberdade de expressão.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Dia dela

                                                Para KS

Que eu a admiro, por sua ética, inteligência e força,
Ela já sabe.

Que eu a acho linda, por suas formas únicas (pois que loira e alta com os traços dela, só ela!),
Ela já sabe.

Que eu a amo, por seu coração de mãe-esposa-mulher-ser humano,
Ela já sabe.

Que ela é minha parça, por nossas trocas acadêmicas e pedagógicas,
Ela já sabe.

Que somos gêmeas de alma, não por acaso do destino uma alemoa e a outra neguinha,
Ela já sabe.

Não há nada novo a lhe dizer, nem mesmo neste dia tão especial. Apenas repetir que sinto tudo isso todos os dias, mesmo quando não nos vemos, não nos falamos, não concordamos, não nos entendemos.
Também quando não nos vemos, não nos falamos, não concordamos, não nos entendemos.
Mas acho que até isso, por minhas palavras-ações,

Ela já sabe.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Meu melhor sorriso

Hoje saí de casa sem meu melhor sorriso

Não foi perda
Ele estava na gaveta
No lugar de sempre
Depois do natural, entre o meia boca e o social

Hoje saí de casa sem meu melhor sorriso

Não foi esquecimento
O bilhete amarelado
Imóvel ao lado da cama
É garantia de memória

Hoje saí de casa sem meu melhor sorriso

Não foi defeito
O mergulho noturno
No composto de motivação e alegria
Triplicou seu brilho

Hoje saí de casa sem meu melhor sorriso

Não foi luto
O pai ama a nora
O gato ronrona com o sobrinho
O câncer não venceu a amiga

Hoje saí de casa sem meu melhor sorriso

Não foi desesperança
A justiça tarda, mas não falha
A fé remove montanhas
Quem espera sempre alcança

Hoje saí de casa sem meu melhor sorriso

Não foi o zodíaco,
A cartomante,
A preta velha,
O pastor.

Hoje saí de casa sem meu melhor sorriso

Não foi o trabalho,
O estudo,
O trânsito
O cansaço.

Hoje meu melhor sorriso não me coube.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Monstro imaginário

Meu monstro não é sem cabeça, de uma perna só,
carrega um saco, mora no escuro ou parece o Boitatá.
Meu monstro não vem da África, Ásia ou Oceania,
muito menos dos castelos europeus.

Meu monstro não é um boi, nem tem a cara preta,
não pega como a Cuca, não mora embaixo de minha cama.
Meu monstro não me atormenta na lua cheia ou na 
                                [sexta-feira treze,
muito menos me espreita nos bosques hollywoodianos.

Meu monstro não está na rua deserta, na arma do bandido,
no ponto de drogas ou após a faixa amarela do metrô.
Meu monstro não é a infecção, o câncer,
a cegueira ou a amputação.

Meu monstro, calma e solenemente,
sem alarde, embora espere resposta,
apenas diz:
Você não vai conseguir”.

sábado, 1 de março de 2014

Credo, dissertação!

Creio na concentração toda-poderosa, criadora da disciplina para escrever a dissertação; e na inteligência, sua companheira, minha aliada; que pode não ter sido concebida comigo, mas nasceu num cantinho do meu cérebro; estimularam na infância, foi desenvolvida, alimentada e reconhecida; às vezes falhou, quis dormir por três dias, quase subiu no telhado; está à direita do computador, na pilha de livros do mestrado, de onde me chama cada vez que respiro. Creio na compreensão de minha família, em mais uma dose de paciência de meu amor, nos amigos que por ora se sentem abandonados, nos convites que voltarão a ser aceitos, nos feriados (daqui a seis meses!) que enfim poderão ser aproveitados, na minha vida de volta. Amém.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Criança na chuva

                            Para PB                            

Chap chap fazem meus tênis coloridos
Chuá pra cá, chuá pra lá, chuá em mim

A luz recorta a nuvem
Quem está fazendo bagunça no céu?
Chuá pra cá, chuá pra lá, chuá em mim

Gelinho do céu no peito, na terra, na boca
Árvore que dança e pinta a água de folhas
Chuá pra cá, chuá pra lá, chuá em mim

A água me lava ou me leva?
Chap chap fazem meus pensamentos coloridos
Chuá pra cá, chuá pra lá, chuá em mim

Em casa, a mãe não ralha:
A toalha me abraça.