Todo dezembro a Tina me leva para
uma igreja, seja para assistir a uma missa ou não, sem que eu me planeje:
quando vejo, estou dentro do templo. Às vezes só para ficar lá um pouco,
ajoelhar, rezar, sentar. Lembrar, chorar, agradecer, pedir. Olhar, chorar mais
um pouco, me recompor. Fazer o sinal da cruz em genuflexão e sair.
Ela sabe que não vou sempre, às
vezes quase nunca, embora reze praticamente todas as manhãs, menos naquelas em
que estou atrasada. Rezo daquele meu jeito que as catequistas que tiveram a felicidade
de serem minhas professoras adoram: em qualquer lugar, sem seguir os scripts
das preces (embora eu saiba quase todas e tenha toda a liturgia da missa na
ponta da língua) e sem linguagem solene. A maior heresia da preta
pré-adolescente foi ter a petulância de dizer que se Ele está em todo lugar,
por que não posso rezar pra Ele quando estou no banheiro? Com certeza isso
chegou esbravejado aos ouvidos da Tina, mas não me lembro de nenhuma
reprimenda, lembro antes de comprarmos velas – eu queria de todas as cores
sempre, mais para admirar que para usar – e acendermos em algum canto no alto
da parede de tijolo à vista ou do quintal, dependia da ocasião, mas quase
sempre com um copo d’água do lado, um pires com papeizinhos, mel, açúcar, às
vezes fitas coloridas... Vez ou outra uma imagem de um santo católico ou de um
guia da Umbanda era também iluminada por aquela pequena chama. Invariavelmente,
Tina rezava. Acredito que todos os dias. Serena, mas concentrada, firme. Ritual
silencioso quase sempre, vez ou outra cantarolado com um ponto, um canto ou uma
melodia qualquer que eu não distinguia, porém me acompanhava o dia todo. Dentro
da minha cabeça.
Todo dezembro, a Tina me leva para
uma igreja. Ela sabe que aquela menina tímida, receosa, medrosa até de brincar
na rua, que preferia ficar enfiada nos livros, era bocuda quando o assunto era
religião. São muitas as situações em que retrucava com alguém da igreja, uma
lista quase interminável, mas centrada nos usos e costumes. De que adianta
ouvir a homilia do padre e na saída da missa xingar a criança “de rua” que está
na porta da igreja, às vezes só sentada, brincando? O que tem a ver a roupa que
uso para ir à igreja? Foi Jesus que disse o que pode e o que não pode? Quem,
como, quando entra na igreja? Tá escrito na bíblia onde? Não era diferente no
Centro da madrinha Avelina lá no Itaim Paulista. Por que algumas pessoas fingem
que estão incorporadas? Acham que a gente é besta mesmo? Ela não veio aqui
pedir ajuda? Por que trata tão mal as pessoas daqui? Por que criança não pode
ficar nessa gira mesmo? E mesmo quando silenciava na presença das pessoas, não
fechava a boca em casa e lá ia a Tina explicar uma passagem da bíblia, o ritual
de alguma entidade e a função da cambone. Quase sempre com paciência e outras
tantas com o encerra-papo “você vai entender melhor quando crescer”.
Todo dezembro a Tina me leva para
uma igreja. Ela sabe que nunca gostei daquelas imagens, embora adore as histórias
dos santos e santas, menos pela santidade em si, mais pela humanidade desses
seres, pela curiosidade de quem diz que são santos e por que cargas d’água o são!
As imagens doridas sempre me assombraram, aquele Jesus pregado,
ensanguentado...eu ficava triste. E o “Ele morreu para nos salvar” me soava
como Ele está lá por nossa culpa (minha?). Como ser feliz com Ele assim? Então
eu preferia conversar com Ele de boa, na minha “língua”, sentado do meu lado na
cama mais alta da treliche, balançando as perninhas no ar, ou tentando entender
o que eu falava enquanto escovava os dentes com água esquentada na canequinha nos
dias mais frios. Com as entidades era mais difícil, porque eu pouco entendia o
que os caboclos falavam... Então eu preferia imaginar, mas no dia da gira tinha
medo de algum deles me confrontar e brigar com os meus pensamentos.
Mas todo dezembro Tina me leva para
uma igreja. Apesar de todas as minhas críticas infanto-eternas, sempre me sinto
bem lá dentro. Nem sei se “bem” é o advérbio certo. Sempre choro, primeiro de
horror pelas atrocidades que fizeram "em nome de Deus", descortinadas
na escola, na literatura. Depois choro de dor pelas perdas, afinal, mesmo
entendendo pela umbanda que há outro plano iluminado para as almas com quem um
dia reencontraremos, aceitar que o corpo se vá e eu não mais escute sua voz é
sempre muito difícil. Nem Ele nem Elas me explicaram isso, de maneira convincente.
Só a Ciência (falência dos órgãos, complicação da cirurgia, doença incurável)
ou a Razão-Acaso-Descaso (batida em alta velocidade, raio, deslizamento de
terra). Difícil se conformar com o “esse é o caminho natural” ou o sarcástico mal
gosto “para morrer basta estar vivo”. Quando o choro cessa, rememoro o ano e
agradeço por tudo, até os momentos ruins, que me fizeram aprender alguma coisa
e crescer, de algum modo, mesmo que eu ainda não saiba qual é. Em seguida listo
todos os nomes que estiveram presentes nas minhas preces matinais, todos e
todas que precisaram de ajuda com algum conflito ou crise familiar, financeira,
amorosa, de trabalho, de saúde, existencial. Aproveito e peço pela saúde de nossos
médicos e psicólogos, que precisam de lucidez pra cuidar da gente. E peço por
todos e todas poetas, todas as escritoras e os escritores, que pelas palavras
(re)constroem esses nossos mundos reais e imaginários. Por fim volto a chorar
de plenitude, que não sei explicar de onde nem por quê. Faço o sinal da cruz em
genuflexão e saio. Todo dezembro. Com a Tina.
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