segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Memórias e desejos


Você ouve histórias de seus pais e outros familiares quando criança e muita coisa fica registrada, nem sempre lembrada. Mas às vezes há um gatilho que as aciona. Você, se teve esse direito garantido, vai à escola, aprende um pouco de tudo, se encanta por algum conhecimento, e esse ou outros acabam virando sua profissão ou se tornam seu desejo a perseguir. Quando eu ouvia na escola sobre poetas e escritores - muito mais "os" do que "as" sempre -, ficava imaginando o longínquo desejo de também viver essa "fraternidade literária", de conhecer e conviver com escritores, ousando ser uma deles. As falas dos pais, realistas (ou duras?), mas pra nos dar casca a aguentar os trancos do mundo, ecoam um "nem sempre você realiza seu desejo, muito menos como ou quando quer". 

     Mas e quando a gente consegue? Ainda que não como pensou, nem quando, porém mesmo assim de uma forma linda? Esse é o momento aqui-agora-meu-nosso: conheço poetas, escritores e escritoras (muuuuitas), algumas com maior ou menor intimidade, e "me aceitei" como escrivinhadora também, bem mais tarde que muitas das que conheço hoje, mas com igual vontade de deixar um pouco do nosso ser-olhar-sentir nesse mundo em forma de palavra. E no meu caso específico e no de alguns desses e dessas, somos pretos. Somos pretos e pretas que escrevem. Não sei se você pode ter a dimensão do que seja isso: muitos de nós não só suplantamos as adversidades pelas quais passamos (antes e ainda agora), nós demos mais um salto, nós escrevemos e nós estamos publicando. É nosso ato. Político e vital. Por favor, só não festejem dizendo que "o mérito é todo nosso", pois isso não nos é elogio. 

Dia 16 de dezembro de 2017 é uma data histórica, pois fora lançado o volume 40 dos Cadernos Negros, com contos de 42 escritoras e escritores negros. "Volume", no caso, significa "ano", senhores: quarenta, assim, por extenso, quaaa-reeen-ta anos de publicação de contos e poemas de autoria negra. Você pode nunca ter ouvido falar, mas não pode mais dizer ou aceitar que digam que há poucos escritos de pretos e pretas. Os textos podem não ter chegado a você. Por quê? Tente responder. É meu convite sempre e agora de novo a partir dessa minha primeira "croniresenheta". Aquele 16-12-2017 foi uma festa só e entre alguns nomes conhecidos de outros volumes, dos saraus e da internet, estava o da amiga Mari Vieira. Amiga por acaso, desde maio de 2017, por ocasião de uma das atividades da Ocupação Conceição Evaristo no Itaú Cultural em São Paulo. Foi amizade à primeira vista, por razões que só mais tarde fomos descobrindo e ainda haverá muitas, eu sinto. Desde então, fomos juntas à memorável Flip 2017, tivemos outros encontros, menos do que gostaríamos (ambas professoras), trocamos mensagens com frequência, indicações de chamada pra publicação. Nós nos apoiamos, nos fortalecemos, como fôssemos amigas de infância. Ficamos perplexas, angustiadas ou raivosas com certos episódios. E nos movemos. Seguimos.

Por acaso do destino, pra quem acredita que seja acaso, só hoje li os contos da Mari. Aqui em Paraty, no meio do mato, ao som dos passarinhos e das crianças correndo. "Fia, a Mãe e a Avó" começa com a cena do abacateiro e a apresentação de Idalina, a Fia, já em seu instigante encantamento. Na minha segunda casa da infância havia um abacateiro, palco e personagem de muitas histórias. Como não se identificar com a escrita da amiga, não pela amizade só, o que já é muito, mas com a infância que ela me traz à tona no primeiro parágrafo? Ah, você não teve um abacateiro em seu quintal... Sinto muito. Mesmo. Sem ironia.

Fia e as amigas vão tomar banho de rio e de novo as memórias de infância me arrebatam. Não, não vivi em mim essa situação, na periferia da ZN de Sampa havia cipó e chão de terra, mas não rio. Vivi pelas histórias da Tina, de seu nascimento mineiro e vivência no interior de São Paulo. E Mari é o quê? Mineira dos "longínquos cantos do Vale do Jequitinhonha", como está em sua minibiografia inscrita no livro.

Estivéssemos em aula agora, qual resumo do conto? "Fia, preta retinta de tranças, toma banho de rio com as amigas." Engano parar nesse superficial resumo, pois desse mote-cena, o cerne são as memórias de Fia, sobre sua mãe e sua avó, rica e sensivelmente construídas na narrativa, na natureza daquele rio, pedras e abacateiro que as corporificam e as unem a Fia. Falar mais é roubar de você o encanto da leitura-construção gerada pela escrita-respiração da autora. 

"Ana Horizonte" já começa deixando você na curiosidade pelo título... Um texto com nome de nome próprio sempre instiga: quem é que eu vou conhecer agora? Quem que teve a chance de ler apagou da mente nomes como Hamlet, Augusto Matraga, Ponciá Vicêncio ou Ana Davenga? Pra ficar nos que me lembro assim de pronto, sem dar um Google! Pois o horizonte de Ana, da Mari Vieira, é polissêmico. É de sua cidade natal, mas também de sua estratégia para lidar na infância com um pai fumaça e também o é da vida que escolheu - ou que lhe foi possível - como empregada doméstica, esposa e mãe, em outra cidade, longe ainda mais. A relação de Ana com a patroa me remete de novo às histórias da Tina, os detalhes que diferenciavam as patroas boas das más, a gratidão e a indignação nem sempre tão claras, tão separadas. Como com Fia, Ana, Tina, Mari ou Catita, passado e presente se mesclam e o futuro é um depois a ser contado à nossa escolha, como um antes ou um agora.



Cadernos Negros, volume 40: contos afro-brasileiros. Organizadores Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa. São Paulo: Quilombhoje, 2017, p. 259-267.



Catita, 15 de janeiro de 2018, croniresenheta (1) dos contos de Mari Vieira: "Fia, a Mãe e a Avó"; "Ana Horizonte".

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