Ao pegar o Cadernos Negros, v40, para fazer a croniresenheta da semana, eu me
dei conta de que não tenho um critério de escolha do conto a ser lido. (E agora
vocês se dão conta de que a proposta é escrever uma por semana – quinzena? -,
se tudo der certo!) Li primeiramente os da Mari Vieira, pois dos 42 autores e
autoras, ela é a única com quem tenho vínculo de amizade fora do mundo virtual.
Passei os olhos pelo sumário – os títulos sempre me atraem - , folheei a
minibiografia dos autores, mas acabei abrindo o livro tal fazia com o Minutos de Sabedoria que ganhei da Tina:
segundos de silêncio, respiração profunda e abertura de sopetão, para ler na
página que cair. “Caiu” em “Arial Black”, de Adilson Augusto.
O conto abre com duas frases bem
curtas que possivelmente já tenhamos usado em algum momento da vida e
desmentido em outros inúmeros: “Raramente mudo. Difícil mudar”. Mas antes que
entremos em uma reflexão existencial ou psicológica, o próprio narrador nos
chama à Terra novamente: “Sigo o meu cotidiano. Ele é muito duro. Pintar
paredes exige paciência.” E segue uma descrição minuciosa, pictórica mesmo, sobre
esse ofício. Você se encanta e, antes mesmo de terminar o parágrafo, divaga e se
encaixa em um dos possíveis três grupos de pessoas: as que nunca pintaram uma
parede, as que uma ou outra vez na vida fizeram isso e as que o fazem todos os
dias. Meu profundo desejo – utopia? - é
que esse último possa ter mais acesso à leitura, ou melhor, que possa ter tido o
direito de aprender a ler e que tenha a oportunidade de poder ler o que queira.
Novamente o narrador-protagonista
nos tira da digressão, corta a rotina e insere uma jovem personagem, de maneira
inusitada, quase non-sense, não fôssemos nós conhecedores dos adolescentes em
geral. Mas nossa adolescente, vizinha da reforma em que nosso pintor trabalhava,
não estava ali apenas para ajudar, e entre ímpetos e rodeios tipicamente
misturados, ela indaga sobre o pai. Sobre o sumiço do pai. Sobre o por quê. E
porque Adilson Augusto constrói uma aura de mistério pelo tripé pensamento-sentimento
de surpresa do pintor, monólogo fuga do tema da garota e ação mecânica-incômoda
da pintura da parede ali presente, você divaga, caro leitor, já alimentando uma
certa raiva por mais um caso de ausência paterna, como tantos que temos na vida
real, que nos indignam independente do momento desse abandono. E nós começamos
a pensar em quanto essa mãe deve ter sido forte para cuidar da cria sozinha, no
quanto ele deve ter sido canalha ao não pagar a pensão, no sofrimento que
causou a todos os envolvidos. Se você for uma cara leitora, é provável que tenha
o grau de indignação aumentado. Sem querer polemizar, caro leitor, mas já ouvimos
muito (sentimos?) sobre uma certa parceria ou “solidariedade” masculina cuja
identificação com histórias assim se constrói negativamente, sob defensiva. E
desculpas frágeis. Injustificáveis.
Mas se o incômodo já está grande,
desculpe o dissabor ainda maior... Tal lixa d’água em ação, sendo a parede o nosso
rosto, revela-se que o mistério sobre o sumiço do pai da garota, amigo de nosso
pintor, envolve uma quase certeza de ser o progenitor um abusador. Confesso que
tive de parar um pouco a leitura, Adilson, como paro todas as vezes em que leio
ou ouço uma notícia sobre estupro. Todas as vezes. Todos os dias. O que é
divulgado, né? Os índices oficiais de 2014 mostram que no Brasil a cada 11
minutos ocorre um estupro. A maioria das vítimas têm até 19 anos. A maior
parte, vulnerável. Mas se especula que seja muito mais, pois muitos casos não
são notificados, denunciados, sabidos. Abuso sexual, estupro, essas palavras me
paralisam por segundos. Me indignam sempre. Me enojam. É a vida de mulheres,
muitas delas crianças, destruída definitivamente, quando “seguido de morte”, ou
com sequelas que nenhuma “superação” apaga.
Antes de começar a ler o conto, eu
havia acabado de saber do caso mais recente, amplamente divulgado porque uma câmera
de rua registrou a espreita do estuprador, sua agressividade com a vítima de 19
anos, levada à força para o banco de trás do carro e tendo uma arma apontada para
sua cabeça por aproximadamente longos 30 minutos. Logo pensei em coincidência
ler o texto justamente nesse dia. Mas a Tina diria que coincidências são mensagens
que nos chegam por outros caminhos, o difícil é interpretar. Tina trazia em sua
bolsa um alfinete grande, desses de fralda, preso e envolto discretamente num
paninho. Incomodada por algum idiota no transporte público, ela não tinha
dúvida: sacava sua arma e alfinetava a parte que lhe tivesse ao alcance. Ela
disse que não teve de usar muitas vezes, mas em todas os caras saíram de perto
dela, sempre sem dizer uma só palavra, mas alguns lhe lançavam um olhar de
ódio. Tina ensinou isso, técnica que usava desde jovem, logo que “tomei corpo”,
lá pela segunda metade dos anos 1980. Queria muito saber o que ela diria hoje,
nos 2018...
Refeita um pouco pelo conforto da
lembrança de Tina, retomo a leitura e me dói mais essa nova lente, direcionada
às vítimas “indiretas” desse pai nosso sumido: a esposa e a filha, essa jovem
que parece querer construir outra história sobre seu pai, uma que não a
atormente. Uma que a deixe seguir sua vida. Amar sem medo. Sem essa nebulosa
sobre seu passado. Sobre os homens. Mas como ignorar a revelação-faca de nosso
amigo pintor “Teu pai cometeu um crime.”? Como lidar? Como continuar pintando a
parede? Não sei. Só posso dizer que, diferente do nosso amigo pintor, a gente
muda sim.
A primeira vez que um homem
desconhecido me exibiu seu membro fálico sem meu consentimento num lugar
público foi numa tarde rotineira de estudos no Centro Cultural São Paulo, na
Vergueiro, na adolescência. Eu fiquei primeiro sem ação alguma, só havia olhado
para ele na mesa ao lado, pois, segurando o livro na mão, ele tinha feito
alguma pergunta que eu não entendi direito. Só consegui juntar minhas coisas e mudar
de lugar. Fiquei por ali um tempo, calculando qual seria o melhor momento de ir
embora. Pensei em falar para a funcionária da hemeroteca, mas não consegui. A
vez mais recente, queria dizer a última, mas seria ingenuidade minha, foi em
2016, já adulta, numa manhã de domingo no Parque da Mooca, enquanto corrigia
redações na grama. Ele já havia passado de um lado para o outro, com sua
bicicleta, se alongava numa das árvores próximas, parecia-me, quando perguntou
as horas. Se os rostos não são conhecidos num parque, a aura do espaço é de tranquilidade.
Levantei meu rosto para lhe dizer as horas, quando ele prontamente pôs seu
membro pra fora. Mas dessa vez eu gritei, ele fugiu correndo, eu contei a
tantas pessoas quanto eu pude. A gente muda sim, se fortalece. Só o nojo é o mesmo.
Cadernos Negros, volume
40: contos afro-brasileiros. Organizadores Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa.
São Paulo: Quilombhoje, 2017, p. 31-35.
Catita, 27 de janeiro de 2018,
croniresenheta (2) do conto de Adilson Augusto: "Arial Black".
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